A desolação de Lunar (2009)


- I’m sorry, Sam. 
- I’m afraid I cannot do that.

O que há no filme que você considera ser seu favorito? Tecnicamente, um filme é o mesmo para aqueles que o assistem. Todos assistimos à mesma cena, protagonizada pelos mesmos atores e construída a partir dos mesmos elementos que a linguagem cinematográfica se apropria para dar sentido à narrativa. Mas um mesmo filme pode conversar com diferentes espectadores de maneiras diversas. Isso dependerá, dentre outros fatores, de quem está do lado de cá da tela. Os livros que você leu, os outros filmes que você viu, as pessoas com quem conversou, as viagens que fez, as experiências que viveu etc. são os pilares nos quais os inúmeros aspectos de sua personalidade, suas opiniões, valores etc. são constituídos.

Nem sempre conseguimos identificar o motivo de gostarmos tanto de um filme. Às vezes sabemos mesmo que o filme é bom. Outras vezes, sabemos que o filme é ruim, mas gostamos dele mesmo assim. Eu, por exemplo, adoro os filmes do Godzilla produzidos pela Legendary, mas no fundo os considero bem ruins, tecnicamente. Quando era criança, tive um Godzilla de brinquedo. Era enorme. Não sei o que houve com ele, quando me dei conta não o tinha mais. Provavelmente o afeto que tinha pelo brinquedo que me proporcionou tardes de diversão foi transferido aos filmes que agora podem gozar de efeitos especiais convincentes – embora a Legendary não use isso a seu favor: mal dá pra ver o bicho.

Mas esse texto não é sobre Godzilla e nem sobre o que nos faz gostar de um filme. É sobre Moon (Lunar, 2009), uma ficção científica dirigida por Duncan Jones (uma curiosidade: Duncan é filho do astro David Bowie) que se passa integralmente na superfície gélida e cinzenta da Lua, película da qual gosto muito e a considero igualmente competente. A narrativa se passa em um futuro próximo, no qual a mineradora Lunar Industries tornou-se uma das principais e mais valiosas empresas do mundo ao fornecer uma alternativa para uma crise de combustível construindo uma estação de mineração denominada Sarang Station no lado escuro de nosso satélite natural.


A função da Sarang Station é basicamente a extração de Hélio-3, uma substância presente no solo rochoso da Lua que serve como combustível alternativo ao petróleo. Para operar toda a estação – que conta com tecnologia e automação de ponta – um único humano é necessário. Essa pessoa é Sam Bell (Sam Rockwell), um astronauta que vive os últimos momentos de seu contrato de três anos. Um problema nos satélites de comunicação impossibilita Sam de se comunicar com a central da empresa na Terra e o limita a assistir mensagens ocasionais gravadas por sua esposa, Tess (Dominique McElligott), e sua pequena filha Eve – a qual ele não chegou a conhecer pessoalmente. Sua única companhia é uma inteligência artificial chamada GERTY (Kevin Spacey), que o auxilia e eventualmente lhe conforta com nada mais que palavras cuja voz sintética denuncia sua origem eletrônica. Em certo momento, Sam sofre um acidente enquanto realizava uma das etapas de seu trabalho. Ao acordar, percebe que existe um clone de si próprio na instalação. A partir daí, Sam – não o personagem, mas Rockwell, o ator que o interpreta – demonstra sua flexibilidade e sensibilidade ao dar vida ao que parece ser a mesma pessoa, superficialmente, mas que numa análise mais cuidadosa, trata-se de personagens muito diferentes.


O primeiro Sam que nos é apresentado demonstra muito cansaço e anseio para voltar para casa. De fato, a partir do instante no qual este personagem descobre seu clone, aparece sempre moribundo, sangrando, caindo aos pedaços física e mentalmente. Exausto, para resumir. O segundo Sam, por outro lado, demonstra disposição e força física, gozando de uma aparência sadia e rija. A convivência é inevitável: impossibilitados de contatar a Terra, os dois confabulam sobre a natureza ou do outro. Quem será o clone de quem? Quem os clonou e por quê? Existem mais clones? GERTY, após uma discussão que chegou às vias de fato entre os dois Sams, lhes conta que ambos são clones de um Sam original. Suas memórias foram implantadas. Seus sentidos e sentimentos são sintéticos. O segundo Sam foi despertado quando o primeiro se acidentou e foi dado como morto. De fato, os clones têm no máximo três anos de duração. Após esse tempo, recebem ordens para hibernar numa espécie de cápsula que supostamente os trará à Terra. Se um clone vier a perecer antes disso, outro é despertado – daí o vigor do segundo Sam em contraste com o primeiro, desvanecido.

Dessa forma, a Lunar Industries poupa recursos que seriam manejados para o treinamento de novos agentes, mão de obra humana, salários, seguros e enfim, toda a burocracia de contratar seres humanos e se apropriar de sua mais-valia. Assim, a central da empresa deve apenas assegurar que os clones não descubram sobre nada e continuem seu trabalho. Apesar de terreno fértil para discussões acerca da natureza das grandes corporações numa perspectiva trabalhista, Lunar decide ir por outro caminho, brincando com nossa empatia de uma maneira curiosa. Há um momento no qual o primeiro Sam tenta entrar em contato com sua esposa, Tess. Uma adolescente (Kaya Scodelario) atende e responde que Tess morreu há certo tempo. É Eve, filha de Sam. Não do clone, mas do Sam verdadeiro. O pode nos fazer perguntar: e se fôssemos nós os clones? Teríamos direito às nossas memórias e entes queridos? Lembraríamos de episódios não vividos por nós e amaríamos pessoas que não conhecemos, pois somos clones. Mais que isso: existem mais de nós. Sabemos que são clones e, ainda assim, nos solidarizamos por sua causa. Queremos que saiam dali. Que sejam felizes. Que revejam sua filha e esposa.

As circunstâncias da trama os levam, os Sams, a conjecturar um plano: sabendo que Eliza, uma nave que tem como propósito remover o corpo do primeiro Sam sem que o segundo saiba – e obviamente isso não é dito para os protagonistas: a chegada da nave é disfarçada por meio de outro pretexto – os astronautas decidem que o primeiro Sam, extremamente injuriado devido ao fato de estar perto de sua data de validade, por assim dizer, deve ser encontrado pela tripulação de Eliza, morto, enquanto o segundo será levado à Terra no transportador de hélio-3 sem que ninguém saiba. Para isso, devem acordar um terceiro Sam para manter as aparências. O segundo Sam, portanto, deve levar o primeiro ao local no qual Eliza espera encontrá-lo. Os dois sobem no veículo e, melancólicos, divertem-se com as lembranças de Tess, mulher que amam sem sequer conhecê-la. A atuação impecável de Rockwell aliada à trilha sonora de Clint Mansell – responsável apenas pela composição de Lux Aetera para o filme Requiem for a Dream – faz com que nos sintamos ao mesmo tempo tristes por sua condição e agoniados pela atmosfera fria do local no qual se encontram - mérito da fotografia do excelente Gary Shaw

E não me refiro apenas à temperatura da Lua e à falta de calor humano, mas à frieza com a qual os protagonistas são tratados. A superfície lunar, desolada, configura um eco para a solidão dos personagens, não apenas por estarem fisicamente isolados, mas por sua existência ser inerentemente solitária. Essa característica encontra seu maior veículo em GERTY, inteligência artificial que num primeiro momento pensei que seria uma espécie de HAL-9000 de Uma Odisseia no Espaço, mas que demonstrou ser um personagem ao mesmo tempo afável e impotente. Afável por sua preocupação para com Sam, chegando a desrespeitar ordens da central para ajudar o astronauta. Mas sua indiferença – ainda que não proposital – é escancarada quando mostra ter conhecimento sobre os clones e, impotente, de certa forma, continua exercendo sua função de três em três anos.

E é essa a principal característica de Lunar: a narrativa é construída de tal forma que a existência de clones, por exemplo, é revelada ainda na primeira hora de filme. Não se configura num plot-twist e nem se pretende como tal. É um filme menos sobre ficção científica do que acerca da natureza da existência e suas implicações. Um de meus favoritos. 


- I’m Sam Bell.
- I’m Sam Bell, too.

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