Nós (2019) - O horror de olhar para si

Em Corra! (2017), seu primeiro filme como diretor, Jordan Peele sinalizou interesse em um cinema fortemente imbuído de comentário social, mas também nitidamente enraizado em referências de um cinema de gênero e voltado para o entretenimento. A combinação foi um sucesso de público e crítica, e a expectativa para o próximo filme de Peele era grande. Em seu aguardado retorno em Nós (2019), o diretor se mantém fiel aos elementos basilares do seu cinema e se mostra ainda mais confortável com a tarefa de equilibrar e conciliar tais viéses dentro da narrativa que propõe.

Após sofrer um trauma na infância, Adelaide (Lupita Nyong'o) retorna ao local do ocorrido com o marido Gabe (Winston Duke) e os filhos Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex) para passar um fim de semana na praia. Contudo, a chegada de um grupo misterioso muda tudo e a família se torna refém de seus próprios duplos.

O fascínio filosófico gerado pela figura do duplo é inegável e surge de forma bastante recorrente ao longo da história das artes, como em O Médico e o Monstro, clássico da literatura gótica escrito por Robert Louis Stevenson. Aqui, a escolha de revisitar o conceito serve à um exercício de reflexão e autocrítica que surge a partir de uma incômoda questão: O que encontramos quando realmente olhamos para nós mesmos? 

A preferência pela reflexão mais ampla no lugar da crítica pontual torna o comentário social de Nós muito menos explícito que o de Corra!, criando para si um subtexto mais rico e menos taxativo. Nesse sentido, Peele demonstra ainda mais sua maturidade estética ao dar ao filme uma dimensão irônica que o desloca das expectativas do gênero de terror e o aproxima da linguagem autoral que está criando para si, disposto a trabalhar com a mescla de ingredientes aparentemente opostos tanto como as inúmeras reviravoltas no roteiro, que não se acanha de ser tão engraçado quanto é violento. Ainda que nem sempre transite entre tais extremos da melhor forma, o comprometimento com tal recurso já é mais do que suficiente para garantir um certo frescor na sua linguagem e sua narrativa.

De certa forma, Nós parece ser especialmente endereçado à parcela do público que encarou o sucesso de Corra! como um indicativo de uma melhora em nossa consciência coletiva. Embora confie no poder do cinema como ferramenta de contemplação, Peele sabe que os problemas que aborda são mais profundos e complexos, mas encontrou em sua afinidade com os "filmes de gênero" uma possibilidade de entregar, mesmo à parcela mais desatenta do público, uma catarse social disfarçada.

Embalado por uma potente trilha sonora e amparado por excelentes atuações - com destaque para Lupita Nyong'o -, Nós é a confirmação de que Jordan Peele é uma das vozes mais originais a surgir do cinema americano nesta década. Rotulado como o "próximo Spielberg", o diretor demonstra que, apesar da sua inegável bagagem cinematográfica e seu visível conforto em meio às referências estéticas e narrativas que utiliza, está mais interessado em ser o primeiro Jordan Peele. Quem ganha é o público.

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