"A Moça do Calendário" é a anarquia de um Cinema Poético capturando flagrantes sociais

O novo trabalho da diretora Helena Ignez é um caleidoscópio politico-nostálgico, que se auto-(di)gere em tom esperançoso e arguto. Experimenta metáforas utópicas revivendo um jeito-humor que não parece de agora, e de fato não é. Ao propor um chorume sorridente, o longa ‘A Moça do Calendário’ parece erguer um varal de referências e citações a fim de reviver conceitos, amparado por poemas visuais e verbais. Há um registro dos fluxos paulistanos como se a imagem concentrasse impressões de ordem espacial-temporal, não se limitando apenas ao estético ou ao cinema de engajamento. A cidade é uma paisagem ideológica, possui uma gradação de velocidades, os espaços importam, é claustrofóbico não coexistir. 

Tantas invenções, alças temáticas e a gente se pergunta: um material que quer falar de tudo, dar conta de tantas manchetes, não corre o risco de ser apenas superficial ou ingenuamente apegada a uma ambição polissêmica?

Existe uma frase dita em um filme de Jean-Luc Godard (Je Vous Salue Sarajevo, 1993) que sugere uma distinção interessante, alegando que ‘cultura é a regra e a arte a exceção’. Ao pensar na arte como um duto de estranhamento, talvez seja mais fácil entendermos aonde Ignez não pretende chegar. Através do resgate de algumas fissuras do Cinema Novo e o sarcasmo Marginal, a diretora alarga impulsos imaginários interessantes a partir de um humor belicoso: estabelece a devoração de emblemas sociais que antes vampirizavam seus respectivos portadores de estigmas - dá até pra lembrar de Glauber Rocha - que, para quem não sabe, foi seu marido.

As tantas situações entre cores e não-cores, a cor que acha seu destaque e fabula a busca por um resto de otimismo, confere um alívio na exaltação de recalques históricos engatados de maneira debochada na interação entre personagens. O maior mérito disso é a forma como o filme injeta uma coloquialidade que nunca cai no banal. Coloquialidade pode facilmente ser confundida com simplismo. A enxergo como um truque eficaz para enturmar os personagens com suas pieguices, idealismos e ingenuidades. Um personagem bem enturmado consigo geralmente ganha o público. É então que André Guerreiro Lopes veste com leveza o jogo proposto, parece já existir antes para o papel uma vez que encontra uma dosagem confortável entre humor e pessimismo, algo bastante possível quando um ator entende espiritualmente um roteiro, obedece acima de tudo não o que está escrito mas o que se subentende a partir do que está escrito.

Por diversos momentos o longa parece estruturalmente abraçar Fellini; em uma declaração, o cineasta italiano chegou a sugerir que ‘realismo’ não seria uma boa palavra, uma vez que não conseguia entender um flash vindo do imaginário como um lapso irreal. No caso do longa brasileiro essa divisão opera a partir de um revezamento estético, simbolizando a divisão de fronteiras sem precisar se explicar. A anarquia romântica acaba funcionando como um ponto de fuga para a realidade do artista-proletário. A moça do título passeia pela tela como uma hipotética recompensa ideológica. Quando os dois interagem, a retórica da musa exige um certo bom-senso progressista, algo que soa contraditório no cotidiano do protagonista, quando a companheira se auto-ironiza como ‘Uber do lar’ ou quando ele regula o desempenho dessa esposa na dinâmica conjugal, ora reclamando da falta de empolgação durante o sexo, ora se queixando que ela gemeu demais. 

A cada bom resultado em suas ousadas concepções, Helena Ignez assume um resgate retardatário que até hoje representa uma lacuna problemática do Cinema Novo: a ausência de direção feminina. Diante desse gap imperdoável, o cinema enquanto trajetória olha para trás e parece voltar de onde parou, mesmo habitando um tal futuro, o cinema responde ao passado já que o passado não pode responder ao cinema.

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