Benzinho: um filme filho da mãe, no literal e melhor superlativo

'Benzinho' me parece um filme apegado aos seus apegos. Apegado em falar do apego imaterial ou tangível. Rela essencialmente no apego mãe-cria e seu entorno constelacional. A mãe que não quer se desfazer dos móveis, da casa de praia, do filho mais velho. O apego é um importante marcador ficcional. A mãe carrega um currículo de quase perdas, de quase ganhos, algo que ecoa em uma espécie de avareza preventiva, melhor sobrar do que faltar. Irene é uma moça de ambições restritas ao medo residual posto pelo passado e alguns empurrões movidos por uma coragem tímida. Existe na protagonista o lirismo marsupial de apropriação dos afetos, alguém que precisa perpetuar todos na mesma foto, a entranha de fazer caber, de tapar ausências. A típica mãe que herda o peso da estrutura, chama pra si o gerenciamento afetivo de seus entes, impede desabamentos, o pé no chão que não pode deixar que o ninho flutue.

Sabe quando uma imersão artística ascende em você um sensor imediato e simultâneo de percepção ao alheio? Assistia ao filme e ao mesmo tempo me ocorria uma intersubjetivação curiosa no extra-campo. Meu amigo que estava ao meu lado tem um apego peculiar, algo que o descreve mas não só o descreve, o denuncia, e nem ele sabe disso. Meu amigo é aquele que quer pousar os cotovelos no encosto dos braços esquerdo e direito da cadeira do cinema, não abre mão, não segue a matemática do ‘se eu encostar meus dois braços alguém não vai ter encosto’. Falando em pequenos transtornos administrativos. Benzinho tem essa beleza de captura do mínimo, consegue detalhar os pequenos modos, ampliar o estreito dos espaços, deixar as cores maiúsculas, é um pouco sobre o complicado mundo dos (des)contratos afetivos, a regência familiar é um ninho prestes ao desfalque.

A porta quebrada não recebe conserto, isso bem poderia pairar como pretexto de impedimento, a fronteira está em manutenção. O filho não pode ir embora pelo rito comum, não sem ultrapassar a instituição-porta e a liberdade consentida. Enquanto isso, a janela funciona como um estado de pendência espelhado nas agruras da protagonista, uma saída alternativa, a porta que não a natural, o adiamento da rescisão contratual precoce.

Funcionando quase como uma biografia familiar baseada num acervo memorialista do próprio diretor Gustavo Pizzi e da atriz Karine Teles, o longa transborda em meio ao aperto, nos obriga a olhar para o afeto genuíno (e também o tóxico) entre departamentos parentais. Boia no lago como se a tela fosse útero, faz a chantagem do cafuné para que ninguém de nós vá embora. Onde cabe um cabem cinco, ou seis...

Quando uma família tem mais membros do que caberia num carro de passeio, alguns acabam indo no colo. Meu pequeno incomodo em relação a Benzinho é o incremento da irmã para evidenciar o que já está exaltado em termos narrativos. Abre-se uma concorrência de dilemas, o apêndice de se esticar demais a família (então vamos sublocar a história com uma atriz consolidada por motivos de Adriana Esteves) apenas para matematizar um pouco mais um drama que já possui um contorno convincente.

Recordemos agora aquele olhar de quando o filho anuncia que vai embora para jogar na Alemanha. Aquele olhar maternal que diz um filme inteiro e justifica a pupila como núcleo-síntese, há o corte umbilical, o pacto simbólico se desfaz, a torneira espirra o descontrole, um olhar que deveria estar feliz, mas desobedece a etiqueta da sensatez. O olhar vira o dono desse parágrafo. Karine Telles deixou ‘Que Horas ela Volta’, mas ainda tem sorvete de Fabinho na geladeira, favor não mexer. Karine trocou de filme, foi da casa grande para o aperto, da dondoca que esbanjava para a moça humilde movida ao verbo guardar. Então, recordemos também aquele último olhar, Irene precisa de um choro para chamar de seu, Irene olha a banda passar e a ficha cai em forma de lágrima.

Algum poeta, pode ter sido eu, disse que o útero é um abrigo viciante. Em moldes existenciais, ‘Benzinho’ cria esse eixo conflitual entre a cesária e o parto normal das separações imprevistas, um filme meio 'filho da mãe', no literal e no superlativo. Olhamos pro álbum de fotos da vida e nos damos conta de que no próximo natal pode ser que falte alguém na mesa, saí do cinema com vontade de abraçar a quem ainda não foi embora.

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