A ambiguidade de 'Hereditário'

Os últimos anos, para quem gosta de filmes de Terror, foram de vacas gordas: O Babadook, Invocação do Mal, Corra!, Um Lugar Silencioso, Fragmentado, A Bruxa, It: A Coisa, A Visita, Ao Cair da Noite e, agora, Hereditário. Este último trata sobre Anne (Toni Collete), uma artista plástica com certos desequilíbrios mentais que perde sua mãe – com quem tinha pouco ou quase nenhum contato – e a forma como lida com o luto. Mas também fala sobre a relação de Anne com sua família: seu filho Peter (Alex Wolff), sua filha Charlie (Milly Shapiro) e seu marido Steve (Gabriel Byrne). Em ambos os pontos de vista, existe quase um estudo de personagem, especialmente da protagonista interpretada magistralmente por Collete, que apresenta inúmeras facetas conforme as variadas nuances emocionais evidenciadas no seguimento da trama. Perceba que, até aqui, não existem elementos restritos ao gênero do terror. Eis a perquirição. No livro O Horror Sobrenatural na Literatura, H. P. Lovecraft escreveu que
"A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido".
Talvez seja essa a principal e mais valiosa característica de Hereditário: não está acontecendo nada que pareça ser sobrenatural, mas estamos sempre inquietos e perturbados. Ao contrário, a rotina da família parece enfadonha e um tanto excêntrica. Nem a trilha sonora, expressão técnica extremamente importante na composição de cenas, atua: em certos momentos, mesmo o silencio é subversivo.

Anne, por exemplo, mente para o marido ao dizer que vai ao cinema, mas, por trás, participa de um grupo de apoio para pessoas que perderam entes queridos. Peter é um adolescente depressivo cursando o Ensino Médio que costuma fumar maconha escondido dos pais e Steve, um psicólogo e membro mais circunspecto da família. O problema apetece Charlie, a filha caçula que sente a morte da avó de forma mais intensa que qualquer outro integrante da família. Sempre desorientada e com um trejeito característico que faz com a língua, o aporte sobrenatural do filme orbita seu personagem, mas não só. Aqui, deve-se reconhecer a competência de Chapiro, atriz mirim que desempenhou seu papel de forma impecável. Mesmo sem nenhum motivo à vista, a mera presença de Charlie no quadro era assustadora. E a questão motivadora, aquela que faz com que não queiramos sair da sala antes do filme terminar ou que fiquemos tão hipnotizados pela trama ao ponto de nos assustarmos com um mero tique de língua: ok, mas onde essa história vai dar?

Fato é que as coisas estão acontecendo. Mesmo antes da estória introduzir o semblante sobrenatural, o enredo oferece pistas e detalhes mínimos orquestrados de forma que, por fim, formam o todo que fornecem coerência e conformidade com as regras estabelecidas durante o desenrolar da narrativa. Após a apresentação da personagem vivida por Ann Dowd (impecável em The Leftovers e também aqui) a sequência de acontecimentos assume um espiral sobrenatural em direção ao clímax. A sensação de que nada estava acontecendo é substituída por um sentimento de desconforto e frenesi. Sem a utilização de jumpscares, o longa desfruta de uma atmosfera pesada e abafada, resultado da competência do responsável pela fotografia escura e incômoda Pawel Pogorzelski. A cena do jantar, por exemplo, traduz toda a maestria técnica do longa: a atuação eficaz de Collete ao transitar por entre sentimentos de culpa, ressentimento, raiva e frustração ao gritar com seu filho, que também deixa evidente a perplexidade em ver a mãe daquela forma. Tudo isso envolto em um espaço escuro e sufocante, ainda que, paradoxalmente, iluminado e enorme.

A direção e roteiro do diretor estreante Ari Aster (anote esse nome), contribui muito para a sensação incômoda de quem assiste. O longo plano em que Peter fica parado – perplexo, desempenhando nossa posição na trama - no carro depois de um acontecimento simplesmente perverso ao passo que apenas o som do pisca alerta dá vida à cena parece durar vinte minutos, tamanha a inquietação e vontade do telespectador de que os comerciais entrem de uma vez. Com efeito, a narrativa não nos poupa desse tormento. Os instantes de desespero, como quando Anne berra que quer apenas morrer tamanha sua dor ou quando Peter grita “Mommy!” de forma tão infantilizada, conseguem, de fato, gelar a espinha. Perceba que não são os fatos em si, mas suas consequências.

É interessante notar como a ambiguidade atua na sequência dos acontecimentos. O personagem Steve, por exemplo, em momento algum age como se estivesse em um filme de terror, despertando incertezas sobre a sanidade mental de Anne, cuja família tem um histórico recorrente de problemas mentais. Em outras palavras: estaria Anne alucinando em decorrência de um transtorno hereditário ou de fato sua teorias sobre sua mãe e o destino da família estariam certas? Toda essa questão ambígua, infelizmente, é quase minada pela cena final, que oferece um diálogo expositivo que subestima a inteligência do expectador.

Por fim, Hereditário aparece como um trabalho um tanto complexo, preocupado com os desdobramentos dos personagens, de ritmo lento e contemplativo, mas acessível. E a despeito da eficiência do filme, é impossível deixar de constatar o hype que permeia o lançamento do longa. Há cerca de cinco anos, saindo da sessão de um filme do qual não me lembro, deparei-me com o cartaz do remake A Morte do Demônio. Nele, havia uma garota de costas em um fundo vermelho com os dizeres “O Filme Mas Apavorante que Você Verá Nesta Vida”. Coisa parecida ocorreu com o marketing de A Bruxa: premiado no Festival de Sundance, críticos de todo mundo diziam ser um filme perturbador e até Stephen King tuitou que quase morreu de medo ao assisti-lo. Do mesmo modo, Annabelle II foi vítima do hype: um vídeo mostrando uma garota supostamente possuída após a sessão circulou nas redes sociais na semana de estreia. Hereditário, por sua vez, é tido pelo jornal USA Today como “the scariest horror movie in years”, além de notícias sobre pessoas saindo das sessões e passando mal estarem sendo veiculadas em grandes portais. Segundo o site Thrillist, por exemplo, “The screams in the theatre were almost as frightening as what was on screen”. Não quero, aqui, entrar no mérito da qualidade dos filmes citados, mas propor, talvez, uma reflexão sobre como a propaganda pode (e vai!) influenciar em nossas percepções e discernimentos sobre as coisas. Em outras palavras: nem sempre a expectativa corresponde ao que está por vir. Por mais desconexo da realidade que isso pareça, se livrar de toda a sensação de euforia que antecede qualquer experiência, incluindo filmes, é sempre muito interessante. Hereditário pode não ser um filme ruim ou o mais assustador de todos os tempos, mas essa é uma discussão a posteriori que deve estar livre de ingerências externas, o máximo possível.

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