A brutalidade no cinema não seria a arte nos salvando da psicopatia?

‘A importância do cinema, pois, recai não somente no seu inegável valor artístico, mas também na sua capacidade de evitar a concretização de atitudes que, se efetivadas na sociedade, conduziriam a desordens e à destruição da harmonia da vida pública’. Jean Epstein

Alguém me disse um dia que a arte de certa forma existe para nos salvar da psicopatia. Fez muito sentido. Somos domesticados por códigos, muitos desses irrealizáveis, códigos irracionais que só encontram freio no super-ego ou no para peito onírico. Um dia inventaram o cinema. Um dia o cinema passou a ensaiar os reflexos conflituosos do nosso cotidiano. Um dia passaram a dizer que o nosso cotidiano também podia espelhar os reflexos do cinema. Acredito nas duas hipóteses. Mas creio em um registro bruto e em um registro liquido dessa captura. Vislumbro uma separação dos feijões junto de um desapego estético à realidade. 

Quando me perguntam qual o tipo de cinema mais me atrai hoje em dia eu cambaleio entre iraniano, sul-coreano ou norte-americano. Mentira. Digo na lata que é cinema grego. É uma vertente radicalmente cruel de se orquestrar a vida, geralmente não existe o arco da redenção, é um pessimismo de gente que não curte carnaval e então mata pássaros com estilingues para aliviar o mau-humor. São tragédias um pouco surreais que quase assumem um terrorismo poético, obras que não poderiam existir caso baixássemos o pdf das proibições da turma do lacre que não é mais lacre. É um segmento fílmico tão cheio de dolo que, em última instância, porta apenas um álibi: o próprio cinema.

O cinema grego contemporâneo ainda é uma safra que se encoraja a mostrar a espiral perversa do homem, numa sempre tentativa de superar sua criatividade diabólica sem pedir desculpas, sempre com uma tendência ao hiperlink com o contexto político do país. Há um paroxismo em forma de reação estética com padrões obscuros, essa vertente é chamada por alguns de ‘Greek Weird Wave’. Sempre que vejo alguém acabando com um filme porque ele teve a coragem (ou cara de pau) de mostrar algo reprovável no mundo de hoje, eu passo a achar que estou diante de um exame minucioso não do filme em si, mas da potência reativa que ele é capaz de gerar. No quanto ele afeta as pessoas para bem ou para mal. Nessa hora, gosto de aproximar o cinema de alguns aspectos da psicanálise para pautar minhas hipóteses. O inconsciente e a arte são afluentes que quando se percebem, são capazes de (i)materializações muito eficazes para a carreira humana. Se o cinema é o redescobrimento de si, capaz de alcances alheios ao espelho e ao advento fotográfico, é preciso levar em conta o que os teóricos Jacques Aumont e Michel Marie diziam sobre o ‘eu’ ser uma estrutura polimórfica, complexa, relativa e dissoluta. Aquele conjunto de códigos diante de nós, muitos deles reprováveis mas ao mesmo tempo projeções essenciais para o nosso ‘ralo’ cotidiano: saber que algo existe, ter um critério sobre o aplicável e o não-aplicável, entender que o inconsciente é ignorado mas não é ignorante e que a nossa personalidade consciente precisa identificar o inimigo. Isso me faz concluir que todo filme pesado é bom? Obviamente que não. Mas também me faz refletir na tendência em fugirmos de uma culpa estrutural através de uma distração atenuante, apontando terceiros a troco de se esquivar. Cultiva-se uma concepção narcisista como auto-defesa: simulamos uma isenção moral para poder receber a obra, é como se precisássemos ser mais virtuosos do que ela e o seu realizador.

Considero frutífero receber o cinema como um painel meramente ilustrativo, a negociação daquele conteúdo cabe a nós, as covardias da ficção escancaram injustiças veladas representando a vida real e então se discute do lado de cá quais assimetrias estão em jogo, quais os símbolos que reforçam determinado átrio de poder, sempre ciente de que você não morde o big mac do outdoor - aquilo é um papel com tinta representando um hambúrguer maior do que ele realmente é. A subjetividade e o cinema possuem esse mesmo poder de pescaria e captura das nossas caixas pretas, dos porões inconfessáveis, também em tom de simulação, e para isso há um acordo implícito entre a obra e interlocução. Fico pensando o quão chato seria passarmos a fingir que tudo isso não existe, inventar uma ficção que finge estar tudo bem, um cinema idílico e obediente que inventa um refúgio hipócrita. Promover uma falta de escoamento da animalidade, subestimar a matéria ideológica que o olhar recebe, desperdiçar a graça de flagrar um subtexto, ignorar a nossa condição de coparticipes de uma obra, entregando uma realidade açucarada por um repelente que nos priva da triagem crítica. Aplaudo quando Jorge Larrosa, diz:
"A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece."
A sétima-arte então não seria como o fogo, mas como a luva de cozinha que nos permite segurar uma forma que está pelando, algo que sem aquela luva jamais se permitiria tátil. Quero lembrar, somos responsáveis pelo que assistimos, sabemos mais ou menos do que se trata, só não se sabe exatamente como aquilo será mostrado (esse dado é fundamental), significa que não somos tão passivos assim aos discursos. "Não levar o cinema pro pessoal" é pensar na lógica do ovo e da galinha, pensar que a linguagem e os códigos precedem o cinema, e não o contrário. Tudo o que está na tela existe ou foi imaginado por alguém, se você acha que aquilo não deveria existir, são outros quinhentos. Existe um saldo residual entre o conteúdo corrompido e o conteúdo aproveitável, isolar uma questão e reduzir a obra ao parágrafo corrompido me soa mais como armadilha acrítica e narcísica do que um balanço setorial. Gosto de quando o escritor Francisco Bosco diz que a experiência não fecha um ciclo de compreensão, contribui a costurar um significado, ajuda a desvendar a moldura vertical e hierárquica de um enquadramento

O espectador enquanto vidente do intolerável do mundo, choca-se com a surpresa e ativa o impensado do pensamento. A partir disso, uma ruptura: o vínculo desse sujeito com a realidade parece comprometido. Este passa a enxergar com mais alcance para as coisas, tem acesso aos sentimentos morais que começam a ter preponderância sobre nossos princípios éticos. Se cinema é discurso, então talvez seja bom pensarmos que um filme possui vários filamentos discursivos, divididos em imagens e personagens em simbiose, são cadeias de interlocuções. Não enxergo coerência em tomar como discurso unívoco apenas pela parte que não me agradou ou por um personagem opressor. Um autor não fala apenas sobre si, fala sobre si diante do mundo, do mundo diante dele. Há durante uma projeção esse levantamento de representações, uma descrição imagética capaz de reproduzir a vida mental profunda. Tanto o mundo onírico quanto o audiovisual inserem simbolismos capazes de satisfazer nossas perversões sem danos concretos. Talvez por isso, a interessante teoria de que os psicopatas não sonham, ou sonham pouco.

De uns tempos pra cá não sinto a menor vontade de pedir desculpas por gostar de filmes que abordam incorreções humanas com requintes polêmicos. Em nada me oponho a quem diz que o cinema tem influência no imaginário coletivo, obviamente que nós, enquanto sujeitos do desejo, somos frágeis diante de manipulações subliminares ou escancaradas. Mas frente a essas teorias, existe a democratização do acesso ao pensamento crítico, ele não é mais estritamente acadêmico em termos físicos, ele está por aqui, na internet, para quem quiser ver, contra-refletir, buscar antícorpos embasados. Essa passividade em relação ao que acontece diante da tela é cada vez mais uma responsabilidade nossa em termos de aplicação no cotidiano real. Mesmo consciente do motivo de um ou outro torcer o nariz para um filme de estampa chocante, defendo a existência desse tipo de cinema porque na arte as proporções e importâncias desafiam a lei do ideal, o produto pode comover sem contemplar, contemplar sem comover. Defender que esses filmes existam, acolher a separação entre licença ficcional e vida midiática do realizador não significa a mesma coisa que defender a não existência de críticas a esse material. Pode parecer incoerente, mas o patrulhamento que defende as heterotopias é um regulador importante de mobilidade do debate, ainda mais se levarmos em conta que a história da arte é uma trajetória de exclusão de singularidades. Mesmo assim, é essencial olhar ao que o material se propõe, ao espaço que ele se permite, ao que ele não se mete a dizer, ao que é prioridade para cada consumidor daquele produto. É bom lembrar que cada universo de abordagem tem uma dor própria que pode ou não ser sua, que a realidade é apenas um de muitos jogos de linguagem. É bom não se esquecer que o cinema LGBT ainda é uma pequena parte com pequenas e carentes partes dentro, mas ainda assim é uma pequena parte: seja ela burguesa, branca ou sem saia. 

Ao olharmos separadamente para os meios de elaboração da vigília em torno do cotidiano e da arte, entre o gregário e o sectário, é possível entender como o protesto não atende a um único formato. A dinâmica do bonding dentro das narrativas não-hegemônicas, diferentemente do bridging, parece criar uma empatia seletiva contra outra empatia seletiva fomentando distâncias improdutivas em termos de avanço de debate. Uma obra sempre é uma questão estética existencial: criador não é a criatura, a criatura é justamente uma troca de sujeito. Isso é: livrar-nos da condenação de sermos nós mesmos e sermos um outro. Hannah Arendt disse que todas as dores podem ser suportadas se você as colocar em uma história ou contar uma história sobre elas. Não sei se o cinema é cura ou a munição que fere, mas tenho certeza que é drenagem ou uma rua que nos atravessa. Então que a arte não é uma confissão de culpa, mas de amoralidade.

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