Os filmes que você já mentiu que viu

Quero aproveitar que as confissões inofensivas ainda são possíveis. Não duvido que com a disseminação de notícias falsas, a saturação da variante mentira x verdade vai render um colapso na forma como nos relacionamos - algo a ser abordado em alguma distopia no cinema, coming soon. Acredito com veemência na teoria de que as pessoas mais verdadeiras são aquelas que assumem quando mentiram. Sei que serei perdoado, além do que, imagino com isso ter causado estrago a ninguém. Derrida dizia que a mentira não existe, existe um ato intencional que envolve o mentir; é um querer dizer e então dizer, a mentira seria uma vontade que parasita a verdade. Pois bem, minto até hoje que vi ‘A Lista de Schindler’. A mentira gosta de recompensas, então forjamos coincidências. Nas rodinhas, no momento de cruzar os gostos, a gente coloca filmes em pauta em busca de afinidade instantânea, rola então aquela pergunta-empolgação: você já viu esse filme? PRESSÃO, PRESSÃO, PALPITAÇÃO... (timidez) Já! 

(Mentira)

Amarcord, Festim Diabólico, Blade Runner, Corra Lola Corra, Senhor dos Anéis, HellBoy, Harry Potter, Casablanca. Ah, os clássicos, vi todos, não pera. Na linha acima há uma lista reduzida dos filmes que eu possivelmente disse a alguém já ter visto, não lembro bem se disse, mas para dar força retórica a um texto, às vezes o escritor precisa exagerar na culpa (nesse caso, vale até mentir que mentiu). Aliás, quero piorar as coisas: vi apenas meia hora de Cidadão Kane.

Por nos sentirmos insuficientes, para sermos reconhecidos como indispensáveis, para ganharmos reforço positivo (likes), tendemos a cultivar sofismas de inclusão. Nessa segunda metade dos anos 10, com o crescimento das interações editadas, das plataformas de streaming e aplicativos de pegação, a necessidade de assunto e de parecermos mais interessantezinhos gerou uma fruição comum quando se está conhecendo alguém: as marcações de identidade. Eu gosto de sorvete 2 bolas, bicicleta e votei naquele senador progressista. Ele gosta de açaí, dirige automóvel e... match: também votou na mesma legenda que eu eleição passada. Pronto, alguém abasteceu uma lacuna das minhas aflições sinápticas. 

(Digressão: eu detesto quando alguém me responde que é eclético. Prefiro quem solta referências, se compromete, assume gostar de Tarantino e de filme pipoca. Pior que isso, é dizer a alguém que você gosta de Netflix como se gostasse de Pasolini, quando isso quer apenas dizer que ambos pagam uma mensalidade para ver milhares de filmes no conforto do lar e mais nada. Mas sim, tem quem ache isso uma coincidência laranja-metade. A verdade é que eu quase nunca vi alguém dizer que não gosta de cinema ou de viajar, nunca fomos tão genéricos e... OK.) 

Lembrando aqui das tantas vezes que alguém me pergunta se lembro de alguma parte de um filme que eu de fato vi, e eu digo que lembro, sem na verdade lembrar. Não chamo isso de mentira, chamo de abreviação. Você simplesmente confirma que lembra dessa parte porque se disser que não lembra corre o risco do interlocutor desconfiar que você não viu aquele filme. Mentir para salvar outra verdade. Economia retórica

Ainda no terreno da farsa 'café com leite', quero exemplificar outras distorções Caso Um, Caso Dois e Caso Três. 

Caso Um
Boto aqui o falso ambientado. Aquele que forja uma intimidade com a obra de um diretor quando na verdade viu apenas dois filmes dele. Na última Mostra de São Paulo fui apresentado à Agnès Varda através da joia ‘Visages Villages'. Me senti tão íntimo, que após a sessão falava aos outros usando um 'acabei de ver o novo da Varda’ (percebem?). 

Caso Dois
Dia desses falei que não havia assistido um determinado filme numa caixa de comentários alheia e veio aquela cobrança de quinta série de um desconhecido: nossa, não acredito que você não viu esse filme. Quer dizer, eu deveria fingir que vi um filme pra não pegar mal, ou para não perder minha ‘credencial’ cinéfila. É assim? Claro que esse tipo de cobrança pode vir de um jeito carinhoso - aliás, se você ainda não viu ‘Mary & Max’, esta perdendo apenas a melhor animação já feita para o cinema, sinto bastante por você.


Caso Três
Muitos criam rankings qualitativos com um certo cálculo de adequação, uma espécie de balanceamento artificial, muitas vezes inconsciente. No ano retrasado, enquanto fazia meu ranking de filmes prediletos, vi que entre os 10 primeiros, apenas dois eram dirigidos por mulheres. Rapidamente passou pela minha cabeça trocar um dos filmes dirigidos por homem por algum outro de direção feminina para pagar de inclusivo e então rolou uma auto-censura bastante honesta e oportuna: a quem você quer enganar, Eduardo? Assista a mais filmes dirigidos por mulheres para gostar de mais filmes dirigidos por mulheres. Não trapaceie nessa lista, rapaz. Disse o superego em plena bravata com o ID. 

Como em todo nicho identitário, queremos caber nos consensos e então a gente oculta que não viu todos os clássicos, que a cinefilia veio tarde, que nem todos têm  ̶i̶m̶ó̶v̶e̶i̶s̶ ̶d̶e̶ ̶h̶e̶r̶a̶n̶ç̶a̶  tempo, ou que o cinema-raiz pode não estar em nossas prioridades. Vez em quando, é saudável assumirmos que o nosso eu-lírico gosta de contar vantagens ou filmes a mais. Aliás, se você também já disse que viu ‘O Resgate do Soldado Ryan‘ sem ter visto, me add.

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