O Erotismo no Cinema: dos Primórdios aos Filmes Atuais

Em 1967, estreava na França A Bela da Tarde, do espanhol Luis Buñuel, filme que seria criticado pelo público mundial e visto como a maior polêmica de sua carreira. A história tem como protagonista a rica dona de casa Séverine (Catherine Deneuve) que, embora casada, se mostra insatisfeita com sua realidade e procura um bordel para passar as tardes trabalhando, realizando suas fantasias eróticas e as de seus clientes.

Não é difícil imaginar o quanto o filme foi linchado. Em plena década de 60, Buñuel lançava na França - e nos países em que o filme não fora censurado – uma parábola sexual sobre desejo, repressão e sexualidade feminina. As recriminações eram em torno da ousadia do tema, das cenas consideradas explícitas para a época e até sobre a escolha da atriz, que refletia uma imagem de puritanismo e foi colocada como uma personagem da alta sociedade que se prostituía.

Hoje, a obra é considerada por muitos como o maior representante do cinema erótico. Distinguiremos aqui o erotismo da pornografia: o cinema erótico não apresenta de forma compulsiva ou obrigatória o ato sexual e a nudez, mesmo girando em torno do sexo (romantizado ou não). O erotismo apresenta uma narrativa, e a consagração sexual do estilo cinematográfico pode ser explícita ou até mesmo apenas sugestiva. Já a pornografia, além de explícita, trata o sexo de maneira obrigatória, as imagens tendem a priorizar o olhar masculino e a instituição de um padrão de beleza.

The Kiss (1896) foi estrelado por May Irwin e John C Rice.

Estreia da sensualidade na tela


Por muito tempo, a única manifestação de conotação sexual no cinema era o beijo. Mesmo que representado de forma breve e superficial, a demonstração da intimidade já era alvo de desagrado e duras críticas. O primeiro beijo da história do cinema foi apresentado no curta metragem de Thomas Edison The Kiss, em 1896. Com duração de mais ou menos 22 segundos, o filme tem o plano fechado e um clima de vergonha e romantismo entre os atores (você pode conferir o curta aqui). Por mais que hoje pareça uma cena artística e experimental, o filme foi rejeitado pela sociedade da época, levando até um jornal de Nova York a descrever a cena como “absolutamente repugnante”.

Marlene Dietrich de fraque e cartola no filme Marrocos (1930).
A atriz também protagonizou outras produções polêmicas como O Expresso de Xangai. 
A representação do sexo na tela e sua repercussão sempre foram bons exemplos para retratar como a sociedade transmitia e consolidava todo tabu, vergonha e a maneira que era julgada a sexualidade. A atriz Marlene Dietrich, famosa femme fatale, ficou conhecida por atuar em filmes que transgrediam a repressão sexual de seu tempo. No filme Marrocos, de 1930 - dirigido por Josef von Sternberg – em uma das cenas, a atriz tem seu figurino masculinizado e dá um breve beijo em outra mulher. Apesar de Marrocos não ter sido o primeiro filme a mostrar um beijo homossexual, o longa causou polêmica pela exuberante sensualidade de Dietrich, que atrai olhares masculinos e femininos. 

De fato, o primeiro beijo homossexual do cinema aconteceu em 1927, no filme Asas. O longa conta a história de dois amigos, pilotos na Primeira Guerra Mundial, que se tornam rivais ao disputarem o amor da mesma mulher. Asas foi a primeira obra a ganhar o prêmio de Melhor Filme no Oscar, o que não teria gerado controvérsia e debate se o filme não mostrasse um beijo entre dois homens.

Hedy Lamarr tinha apenas 19 anos quando viveu Eva no filme Êxtase (1933).

O primeiro nu frontal do cinema do circuito comercial foi da atriz Hedy Lamarr no filme Êxtase, em 1933, gravado na antiga Tchecoslováquia. Lamarr interpreta Eva, uma mulher que resolve deixar o marido bem mais velho que ela e retorna para a casa de seu pai. Um dia, banhando-se no lago, ela conhece um jovem, com o qual descobre o desejo e o amor. Os enquadramentos contribuíam para a sexualização da mulher, já que não exibem o masculino e nem sua sensualidade. Por muitos anos, a película foi proibida em diversos países.

A crítica social e a Censura Hays


A indignação popular havia piorado devido aos filmes que começaram a apresentar narrativas e cenas mais irreverentes e liberais, muitos atores estavam envolvidos em escândalos com droga, adultério e excesso de festas e bebidas e, então, se tornou crescente a especulação sobre o pedido do público por uma censura no cinema.

Para agravar, Hollywood já era difamada como a “cidade do pecado”, a péssima notoriedade que permeava esse universo foi acentuada quando manchetes sensacionalistas envolvendo estrelas do cinema foram divulgadas. A reputação dos artistas se transformou em algo mais criticado e avaliado pelo público e por religiosos fanáticos. Preocupados com sua reputação e com a pressão popular, os produtores cinematográficos decidem criar em 1922 uma entidade (a Motion Picture Association of America, ou MPAA), encarregada de velar pela moral no cinema. Com o intuito de recuperar seu bom nome, os produtores contratam Will Hays, um advogado republicano, de fortes crenças religiosas, para liderar essa associação.

Entretanto, a censura não era tão radical, muitos filmes passavam despercebidos ou nem chegavam a ser avaliados já que a supervisão ainda era fraca. Com o surgimento do cinema sonoro em 1927, as produções ficaram mais ousadas. As trilhas sonoras ajudavam a evidenciar o clima sensual, os ruídos dos beijos em cena e diálogos mais explícitos sobre relacionamento fizeram com que a desaprovação de grande parte do público crescesse. Logo, Hays recebe um maior apoio social e consegue decretar, vigorosamente, o famoso código que leva seu nome.

Cena do filme A Ceia dos Acusados, de 1934, já mostrava o casal em camas separadas, conforme prescrito pelo Código Hays.
A consolidação das chamadas regras puritanas foi instaurada com firmeza em 1934. É por isso que alguns filmes da “era pré-Hays” ainda violavam determinados princípios morais. A partir desse ano, foi exigido que todos os filmes lançados passassem por uma aprovação para obter um certificado definindo se poderiam ou não ser estreados. Eles tinham poder desde alterar roteiro e modificar a edição do filme como até mesmo vetar produções. 

Além disso, foi criada uma lista de códigos divididos em “Dont’s” (no qual o uso era absolutamente proibido) e “Be carefuls” (seja cuidadoso; poderia conter na narrativa de forma comedida ou com algum objetivo). Eram condenados filmes que tivessem alusão à homossexualidade ou relação sexual, aparição de casais inter-raciais, nudez, tráfico de droga, sátira da alta sociedade, palavras de cunho religioso em vão e expressões vulgares. Era impedido mostrar casais – mesmo que casados – dormindo na mesma cama, as cenas de beijo deveriam ter apenas 3 segundos. Temas como prostituição e aborto também eram proibidos.

Já na lista para se ter cuidado, eles pediam cautela ao retratar o adultério, e caso fosse mostrado, deveria ser de forma negativa. Uso de arma, roubo, assassinato ou qualquer outro tipo de violência também eram ultrajados, além do uso da bandeira dos Estados Unidos, religião e história de outros países, palavras de baixo calão, entre outras restrições. Era recomendado que os roteiristas e diretores exaltassem os valores familiares, religiosos e patrióticos. O objetivo era transformar os tais galãs de Hollywood em modelo de virtude e exemplo de moral. 

Cary Grant e Ingrid Bergman, casal protagonista de Interlúdio (1946).
Para não terem suas obras banidas, os cineastas usavam sua criatividade para driblar o sistema, como foi o caso de Hitchcock em Interlúdio (1946). O diretor criou, em cima da regra dos 3 segundos, a cena que hoje é considerada como o beijo mais demorado do cinema, com aproximadamente 2 minutos e meio de duração: os atores interrompem os beijos e depois voltam a se beijar por mais três segundos, e assim fazem consecutivamente. Portanto, o filme não poderia ser vetado.

Grandes outros exemplos que foram afetados pelo código conservador, foram os clássicos Quanto Mais Quente Melhor e Casablanca. O primeiro, lançado em 1959, teve seu roteiro modificado, piadas alteradas e cortes na duração de algumas cenas da Marilyn Monroe. O segundo filme precisou remodelar o seu final conforme as exigências, era desprezível um final feliz para um casal adúltero, o que acabou, de qualquer forma, por gerar um dos desfechos mais famosos da história do cinema.

Jane Fonda era a agente do espaço Barbarella, o filme foi baseado nos livros adultos de Jean-Claude Forest.

Retomada à liberdade narrativa


Na década de 1960 para frente, as leis de censura já eram mais relaxadas, a aplicação do código não se sustentava mais. Entretanto, foi só oito anos depois que o Código foi realmente abandonado e que a MPAA aderiu ao sistema de classificação de faixa etária, o qual rege até hoje.

Com o fim da censura, os filmes começaram a escandalizar, era época da revolução sexual, lutava-se por uma libertação dos paradigmas impostos sobre o corpo, pelo fim do sistema patriarcal e por uma maior liberdade sexual. Seguindo essas ideias, o cinema refletiu a sociedade americana daquele momento e correspondeu às suas expectativas. Porém, mesmo sendo menor, a parte puritana e tradicionalista do público ainda se mantinha fervorosa nas críticas.

Foi lançado em 1968 o filme Barbarella, estrelado por Jane Fonda. Considerado uma comédia erótica, Fonda é uma astronauta enviada da Terra para o universo, ela precisa capturar o perverso Durand Durand, que criou uma máquina de sexo destinada a matar de prazer os que são submetidos a ela, e assim acabar com a paz na galáxia. Há constantes trocas de roupas transparentes e insinuantes da personagem e cenas com acessórios sexuais, o que contribuiu para tornar Barbarella uma sex symbol.

Em Primeira Noite de um Homem (1967), Dustin Hoffman personificou Benjamin, jovem recém formado na faculdade que tem suas primeiras experiências sexuais com uma amiga de seus pais.
Havia uma nova liberdade disponível para os cineastas que almejavam tratar de temas eróticos ou inseri-los em suas histórias. Mulheres nuas, drogas e sexo voltaram a ativa para violar os tabus. Diversos filmes com conotação erótica tornaram-se indispensáveis para a história do cinema, tentando sempre tratar esses temas com naturalidade. As produções eram audaciosas, filmes como O Desprezo (1963, de Jean-Luc Godard), A Primeira Noite de um Homem (1967, de Mike Nichols) que inclusive recebeu sete indicações ao Oscar, O Último Tango em Paris (1972, de Bernardo Bertulucci), O Império dos Sentidos (1976, de Nagisa Oshima), Veludo Azul (1986, de David Lynch), Ata-me (1989, de Pedro Almodóvar), entre outros, consagraram o erotismo e a ousadia sexual no cinema, caminhando entre a arte erótica e a pornografia, o explícito e o implícito.

Quando questionadas sobre as filmagens eróticas em set, as equipes de produção desse gênero alegavam usar recursos técnicos nas cenas de sexo, sem pressão ou coerção em cima dos atores. Demorou um tempo, mas os questionamentos sobre os danos físicos e morais que atrizes e atores sofreram em cena começou a ser revelado e debatido, alertando ao público, inclusive, acerca da forma que o papel da mulher foi representado em algumas obras e os absurdos que viveram nas gravações. 

Análises mais recentes sobre as obras confirmaram a objetificação da mulher na maior parte dos filmes; não há sempre plano detalhe do corpo feminino, mas este entra em foco mais vezes que o masculino. As câmeras não acompanham o homem se despindo, encurtam insinuações e priorizam a mulher nua e suas expressões na câmera. As análises também serviram para identificar características da construção das personagens femininas, que em sua maioria são sensuais, e tem como maior objetivo agradar ou conquistar algum personagem masculino, sem grandes propósitos para a trama.

Michael Pitt, Eva Green e Louis Garrel no filme Os Sonhadores (2003).

A evolução do estilo e novas reivindicações 


A demanda social foi mudando, e o cinema não ficou para trás: com o tempo, os enquadramentos tendiam a ser mais igualitários, o interesse do público feminino em filmes eróticos crescia e novas produções como E Sua Mãe Também (2001, de Alfonso Cuarón), O Sonhadores (2003, de Bernardo Bertolucci) e Ninfomaníaca (2013, de Lars von Trier) voltaram a interessar os espectadores que lidam com o gênero com mais atenção e consciência, já que os filmes também apresentam narrativas que tratam o sexo como complemento necessário para o público entender o conceito da história e compreender o caráter dos personagens. 

O cinema, portanto, torna-se, digamos, mais real, mostrando fases da vida, o amadurecimento, experiências, dúvidas, descobertas e questionamentos que cercam o ser humano. Sem reservas e constrangimentos. O sucesso de Azul é a Cor Mais Quente (2013, de Abdellatif Kechiche), e sua exibição em diversos festivais, comprova como o erotismo tem se tornado um pouco mais habitual aos olhos dos espectadores, analisado por diferentes perspectivas.

Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux em Azul é a Cor Mais Quente.
Em entrevistas posteriores ao lançamento do filme, contaram se sentir desrespeitadas pelo diretor em determinadas cenas.
No entanto, existem ainda restrições e julgamentos a respeito do estilo cinematográfico, como por exemplo, a polêmica decisão da Sonopress em 2013, principal empresa que faz autoração (processo de criação do menu do DVD, legenda, navegação de acesso ao conteúdo extra, interatividade, etc) de Blu-rays no Brasil, que se recusou a lançar o filme nesse formato.

Dificultar a divulgação de uma obra ou negar a produção da mesma em variados formatos é um dos tipos de censura que a arte e os espectadores ainda estão submetidos. Contudo, a empresa justificou dizendo que foi impedida por conta de seu contrato com outras empresas. Já a SONY DADC também se recusou, por considerar o filme inadequado. 

O público de várias gerações foi privado de assistir à filmes que poderiam existir hoje, cenas que foram restringidas ou nem chegaram a ser gravadas. Histórias que deixaram de ser contadas e apresentadas, toda a arte que foi repreendida por uma desaprovação moral é um dano irreparável para a trajetória do cinema. 

Atualmente, ideias livres de amarras tendem a falar mais alto, assim sendo, filmes com temática íntima continuarão sendo produzidos, e cada vez mais serão tratados com naturalidade em suas narrativas. As produções cinematográficas nem sempre são audazes como imaginamos, muitas vezes surgem apenas como reflexo do momento social em que vivemos, e enquanto caminharmos coletivamente sentido a abordar com normalidade temas como sexo, o cinema, no seu sentido mais artístico e significativo, caminhará junto.

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