A Trilogia das Cores, de Krzysztof Kieślowski

Ao assistir a um filme é fácil identificarmos a tendência única de grandes diretores. Esse é o caso do polonês Krzysztof Kieślowski. Seu estilo e tema são marcas singulares em sua filmografia, permeando um cinema de poesia mesmo ao retratar fortes narrativas.

Na década de 1980, o cineasta se muda para a França atraído por melhores condições financeiras e motivos políticos. É lá que o já conhecido diretor do filme “A Dupla Vida de Véronique” (1991) recebe o convite para homenagear, através do cinema, o bicentenário da Revolução Francesa - acontecimento histórico que originou o famoso lema "Liberdade, Igualdade, Fraternidade" -. 

Alguns esperavam filmes monumentalistas sobre a Revolução. Personagens, cenários e arquivos históricos que enaltecessem a França, mas a proposta do diretor era inovadora: qual é a importância da liberdade, igualdade e a fraternidade para sociedade hoje, ou qual é a relação das cores da bandeira francesa com os indivíduos? Assim nasce a Trilogia das Cores
O azul está presente em todo os ambientes da protagonista, acentuando a tristeza de Julie
Sua primeira resposta para tais questionamentos é "A Liberdade é Azul" (1993), ou apenas "Bleu", no título original. A liberdade de Julie, interpretada pela Juliette Binoche, vem após a tragédia de um acidente de carro, em que morrem sua filha e marido, um aclamado compositor reconhecido mundialmente. Para conseguir um desprendimento do passado, a protagonista decide se libertar de tudo que a lembre sua antiga vida, se livrando até de sua própria casa, e se muda para um apartamento. 

Constantemente questionada sobre sua dor, Julie não chora na frente de conhecidos, não se desespera e não se atormenta da maneira que esperam que ela faça. A protagonista sofre em silêncio, reclusa em seu novo apartamento, evitando contato social e se entrelaçando com o azul cotidiano que a cerca, mas são justamente acontecimentos passados de seu marido que a impulsionam a voltar a vivenciar outras emoções.

O conceito de liberdade apresentado é diferente, e nos faz refletir se a liberdade em seu estado mais puro só pode ser vivenciada de fato quando se está sozinho ou se a libertação é, na verdade, uma questão de utopia. 
Julie Delpy vive Dominique, no segundo filme da trilogia 
"A Igualdade é Branca" (1994), ou "Blanc", é o único da trilogia tratado de forma mais cômica do que dramática. Nessa narrativa somos apresentados a Karol, protagonizado por Zbigniew Zamachowski, um polonês que se sente traído por sua esposa francesa após ela pedir o divórcio. Abusando do estado de fraqueza do marido, Dominique (Julie Delpy) o humilha sempre que pode. 

Sozinho e sem dinheiro numa França individualista e hostil, Karol não tem outra opção a não ser voltar para a Polônia. Reerguendo-se aos poucos, mas ainda apaixonado por sua esposa, ele planeja uma vingança. A cor branca que permeia suas lembranças e ambientes os quais frequenta acentua a personalidade tranquila do protagonista. 

A igualdade de um personagem que sempre se sentiu inferior ao lidar com uma esposa de uma cultura tão diferente da sua vem quando Karol começa a se impor perante a todos, e assim ganhar respeito e admiração. O protagonista passa a ser tratado de igual para igual apenas quando se coloca perante às situações. Kieślowski nos lembra de que a igualdade não é algo que nasce conosco, ela ainda hoje precisa ser conquistada
Cena do último filme da Trilogia das Cores, "A Fraternidade é Vermelha" (1994) 
Irène Jacob dá vida à Valentine, personagem principal do último filme da trilogia. Em "A Fraternidade é Vermelha" (1994), ou "Rouge", a modelo Valentine tem a normalidade de seus dias quebrada quando atropela uma cadela. Através do endereço na coleira, ela consegue identificar o dono no animal. Valentine conhece então um juiz aposentado que passa seu tempo ouvindo, através de um aparelho de escuta, as conversas dos vizinhos. Ela pensa em denuncia-lo, mas apesar da repulsa inicial de Valentine pela prática voyeur do homem, ela consegue compreender suas motivações, o que os faz construir uma inusitada amizade. 

O juiz é pessimista sobre a humanidade e usa dos segredos que escuta para reafirmar sua opinião sobre existência do lado obscuro do ser humano, já Valentine acredita que podemos ter várias faces, e não é só uma que define nossa personalidade. A positividade da modelo afeta drasticamente o modo de viver do homem. 

O vermelho da fotografia, presente em diversos momentos da história, ressalta a necessidade do relacionamento humano, a ligação fraternal que se pode construir com pessoas de ideias e crenças diferentes. A ideia concebida é nos fazer pensar sobre o real valor da fraternidade, e como ela pode ser facilmente construída e transformada. 
Jean-Louis Trintignant (Amour, 2012) é o juiz derrotista em Rouge 
É nesse último filme da Trilogia das Cores que os personagens das narrativas anteriores fazem uma breve aparição, em que têm seus caminhos cruzados e vidas afetadas pelo acaso. As histórias coexistem ao mesmo tempo, os personagens se encontram, mas não se comunicam. O diretor foca no acaso, mostrando acontecimentos que ligam indiretamente uma pessoa a outra. Os mínimos detalhes das três narrativas criam uma comunicação única entre o diretor e público, que confidencia toda a vida íntima desses personagens. Em determinado momento, os protagonistas são colocados em situações parecidas - como ajudar um estranho na rua, por exemplo -, mas a partir da reação diferente de cada um, formamos uma opinião e entendemos melhor o universo particular do personagem. 

A interpretação dos títulos com as histórias também é construída pelo espectador, todas as significações que se busca só serão encontradas se refletirmos, e mesmo assim, as respostas serão variadas. É necessário criar hipóteses para constituir um melhor entendimento das obras. As cores estão fortemente ligadas ao estado de espírito que os protagonistas se encontram, além de ressaltar a dramaticidade do enredo. A cor do título sempre está presente, mesmo que sutil, na fotografia dos filmes. A proposta estética do diretor polonês é ressaltar a cor predominante com toda a individualidade de seus personagens.

A Trilogia recebeu vários prêmios e indicações, atraiu novamente os olhares para o cinema europeu e criou uma forma cinematográfica única em quesito artístico e intelectual. Seja na aceitação dos acontecimentos, na identificação de si mesmo ou na preocupação e reconhecimento com o próximo: liberdade, igualdade e fraternidade são palavras que têm essência e significado individuais. Kieślowski conseguiu, com sucesso, nos mostrar o dele.
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