Eduardo Coutinho e seus documentários: breve análise

Eduardo de Oliveira Coutinho, documentarista brasileiro conhecido por suas obras tais como “Edifício Master” (2002), “Cabra Marcado Para Morrer” (1985) e “Santo Forte” (1999) teve um final tão trágico quanto algumas das histórias contadas em suas obras, sendo assassinado por seu próprio filho, vítima de esquizofrenia, dentro de seu apartamento em Copacabana no dia 2 de fevereiro de 2014.

Considerado por muitos como um dos maiores documentaristas brasileiros, Coutinho deixou um legado para toda a produção cinematográfica nacional, levantando diversas questões, sobretudo no que tange a produção de documentários e a linha tênue entre a ficção e verdade, dando voz a personagens anônimos, personagens geralmente ignoradas pelo cinema, tornando-os partes fundamentais em suas narrativas.

E, ao colocar personagens desconhecidos diante das câmeras, Coutinho além de trazer visibilidade para diversas questões que passam despercebidas tanto pelo cinema quanto pela população, dá relativo protagonismo ao sujeito ordinário, embora seja explícita a desigualdade na relação entre câmera e entrevistado. Outro ponto interessante de se ressaltar nessa relação é a forma com a qual o entrevistado relate os fatos, também se aproximando muito da ficção ao selecionar mentalmente qual será a melhor maneira para relatar sua trajetória e em quais aspectos se apegará, por exemplo.

Ainda que o documentário seja visto por muitos como um relato da “verdade nua e crua”, ele torna-se então uma questão de perspectiva, subjetiva. Renato Tardivo diz que na obra de Coutinho não se fazia sentido a proposição da filmagem da verdade cotidiana, mas sim da verdade da filmagem, que ele define como “este hiato invisível – e infinito – entre entrevistador e entrevistado, de onde emergem as personagens reais. (...) A verdade é inapreensível e suas formulações, inesgotáveis”, uma das várias representações possíveis, sem que necessariamente o entrevistador tenha pleno controle dos resultados das entrevistas, mas da edição do produto final.



Próximo ao lançamento de “Edifício Master”, Coutinho havia falado sobre a relação entre a verdade e a ficção, citando David MacDougall, documentarista autor do livro “O Cinema Transcultural”:
Ele diz que a partir do momento que você quer filmar o real, mesmo o etnógrafo mais puro, que não quer inventar nada, e filma 15 horas o litoral, depois 12 horas a ressaca, mesmo assim ele não pode se iludir que está filmando o real. O que ele está filmando, apenas nesse caso extremo, é o encontro entre o mundo do cineasta ou da equipe e o mundo do outro.
A partir disso, o cineasta então busca em sua produção traçar um vínculo intenso entre sua obra e o espectador. Segundo Milton Ohata, organizador do livro “Eduardo Coutinho”, editado pela Cosac Naify,
Coutinho consegue falar das pessoas comuns com muita verdade. Público e especialistas gostam dos filmes dele por causa disso, tudo é muito pensado esteticamente. A ‘feiura’ é proposital. Ele é o grande responsável pelo boom do documentário brasileiro e consegue ter liberdade trabalhando com baixos orçamentos.
Complementando, o documentarista ressalta que no resultado final, ficção e documentário se aproximam muito, embora a ficção tenha menos preocupações éticas que o documentário, já que este é visto há cem anos como para educar, ensinar e dizer apenas a verdade, sendo impossível de se vender algo assim.

Talvez a maior de suas obras, o “Edifício Master”, lançado em 2002, mostre como o cineasta busca sugerir um olhar para que o público veja e participe da obra. Os personagens são alguns dos moradores entrevistados pela equipe de Coutinho – que residiu durante uma semana no local – que ganham voz ao falarem do cotidiano do edifício de Copacabana e suas respectivas vidas. A obra coloca o espectador diante de inúmeras questões, fazendo-o refletir e se emocionar, mesmo sem uma trilha sonora ou até mesmo uma boa fotografia: ao que parece, o filme foi feito com baixo orçamento e isso acaba por dar ênfase aos relatos e em toda a forma simples com a qual o documentário é apresentado. A crueza e a forma da realidade ali explicitada já bastam, sendo ainda mais evidenciadas pelo aspecto claustrofóbico dos corredores escuros e dos apartamentos apertados.

E é exatamente a partir de questões como estars que Coutinho consegue fazer então emergir uma 'atmosfera de verdade', sobretudo ao saber conduzir os entrevistados como um psicanalista, tendo precisão em suas colocações, colocando assim o próprio entrevistado em diálogo consigo mesmo, pondo o particular e o único, como algo universal, possível, comum.

Em entrevista concedida em 2002 a Marília Gabriela, no programa “De Frente com Gabi”, Coutinho define que os documentários que ele faz
são tão ficcionais quanto filmes de ficção, só que mais até. (...) E no “Edifício Master” as pessoas elaboram – ficcionalmente – dizendo a ‘verdade entre aspas’, que ninguém sabe qual é, eles elaboram suas vidas de uma tal forma que é ficção. Uma pessoa me disse que o “Master” lembra um melodrama, e é interessante dizer isso pelo seguinte: nesse filme, eles falando de suas vidas, você nota como é forte a telenovela. Porque todos têm essa experiência de ‘o reconhecimento do pai, a pessoa que não sabe quem é seu pai, quem é seu filho, sua mãe’, isso está presente. Por isso que a novela é forte.
Pode-se perceber então a presença da ficção em “Edifício Master”, seja nos diálogos ou na própria edição do autor, que não descarta de forma alguma isso, não corroborando com o pensamento do documentário como apenas informativo ou educativo. Em outra entrevista dada ao programa “Sangue Latino”, no Canal Brasil, ele conclui então que
(...) toda memória é inventada. Isto é, não é porque é mentirosa, é porque é uma memória que podia ser diferente três dias depois com outra pessoa. Então depende de uma interação, de um momento que as pessoas dizem coisas e que, se eu acredito, são verdadeiras, mas que não tem como checar na medida em que falam sentimentos (...). Como são pessoas que não estão ao Google, são geralmente pessoas não-públicas, se fala e fala com força, fala com verdade entre aspas, são verdadeiras. Mas até que ponto checar se são verdadeiros os sentimentos do passado? E então eu acho que as pessoas simplesmente contam as coisas, não só memórias, para dar sentidos as suas vidas (...). Tem filósofos e sociólogos que dizem isso, que a pessoa tem de ser justificada, tem que ser legitimada e falar ao outro, se você criar as condições e se legitimar (...) A necessidade mais essencial do ser humano é essa: é ser legitimado.
O documentário então explora uma suposta necessidade de legitimação por parte das pessoas entrevistadas. As pessoas geralmente sentem essa necessidade de serem ouvidas, seja pelas câmeras de Coutinho ou por qualquer outra pessoa. É uma relação que se aproxima tanto de uma terapia quanto da própria atuação ficcional, como dito anteriormente. E aí consiste a questão do melodrama, ao romantizarem suas próprias histórias, de se colocarem em suas histórias como personagens. E a câmera é a chance de se colocarem como protagonistas, coisa que por vezes nem as suas vidas inteiras fizesse, sentindo-se invisíveis para o mundo. Portanto, sentem essa necessidade frisada por Coutinho de se colocarem enquanto agentes ativos diante das câmeras e do mundo, com suas experiências, alegrias e tristezas. Vale ressaltar que esse aspecto da legitimação dos personagens é presente em praticamente todas as obras de Coutinho.

Concluindo, boa parte das obras de Eduardo Coutinho podem ser vistas como análises do Brasil contemporâneo, vítima de um capitalismo de modernização com perspectivas indefinidas e completamente desiguais - algo cada vez mais evidente. Coutinho consegue retratar com simplicidade e beleza tantas questões cotidianas - algumas mais distantes de nós; outras, pelo contrário, tão próximas - propondo as mais variadas perspectivas de se observar a vida do plural povo brasileiro.

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