A origem do Coringa, o vilão mais famoso do universo dos quadrinhos, sempre esteve intimamente ligada ao cinema. O personagem, criado por Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane, estreou em Batman #1 (1940), com um visual inspirado no ator Conrad Veidt, intérprete de Gwynplaine no filme O Homem que Ri (1928), dirigido pelo cineasta expressionista Paul Leni.
Tal como Gwynplaine era atormentado por sua expressão desfigurada por um sorriso permanente, o palhaço/aspirante a comediante Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é atormentado por uma condição que faz com que ele ria descontroladamente. É a primeira de muitas apropriações - ou referências - utilizadas pelo diretor Todd Phillips - mais conhecido pela trilogia de comédia “Se Beber Não Case” - para construir uma história de origem para um personagem marcado pelo mistério em torno de si.
O grande risco assumido por Coringa (2019) é o de contextualizar as motivações da vilania do personagem - algo habilmente evitado em O Cavaleiro das Trevas (2008) e ignorado em Esquadrão Suicida (2016) - , especialmente sem contar com o contraponto filosófico do seu arqui-inimigo, o Batman. O esforço em criar uma interpretação do personagem bastante distinta das que a precederam é louvável, e seus acertos derivam da magistral atuação de Joaquin Phoenix, em uma das melhores interpretações de sua versátil carreira, que conta com obras-primas como O Mestre (2012) e Ela (2013). O seu Coringa é multifacetado e dispõe de uma fisicalidade intensa, de ares kafkianos, e se desenvolve por caminhos pouco explorados pelas versões anteriores que não tinham um filme inteiro dedicado a si, criando um personagem complexo que constantemente flerta com a empatia do público enquanto sucumbe gradualmente à crueldade e a violência.
Também sinais da insegurança ou falta de tato de Phillips com o filme são a onipresença da trilha reforçando o “clima” de praticamente todas as cenas com maior carga dramática e a insistência do seu roteiro (co-escrito com Scott Silver) em determinadas situações que “explicam” demais a origem de certos elementos que compõem a vilania do seu protagonista, esvaziando uma potencial ambiguidade apresentada em diversos momentos do filme, especialmente no que tange suas relação com sua mãe, Penny Fleck (Frances Conroy) e Thomas Wayne (Brett Cullen).
Apesar de suas deficiências, Coringa é um filme que suscita emoções fortes e demonstra uma percepção certeira do porquê um personagem como este é capaz de ser tão sedutor e influente, criando uma narrativa em torno desta visão, que apesar de datada por sua ambientação oitentista, dialoga com tensões e problemáticas bastante contemporâneas. Apresentando uma interessante, mas irregular reinvenção da mitologia clássica do vilão, o filme propõe uma abordagem inegavelmente diferenciada dentro do nicho de adaptações de histórias em quadrinhos, que respeita o legado do personagem e o direciona por caminhos surpreendentes que podem causar grande impacto nos projetos vindouros da Warner/DC nos cinemas.