Coringa (2019) - A Vilania Multifacetada


A origem do Coringa, o vilão mais famoso do universo dos quadrinhos, sempre esteve intimamente ligada ao cinema. O personagem, criado por Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane, estreou em Batman #1 (1940), com um visual inspirado no ator Conrad Veidt, intérprete de Gwynplaine no filme O Homem que Ri (1928), dirigido pelo cineasta expressionista Paul Leni.

Tal como Gwynplaine era atormentado por sua expressão desfigurada por um sorriso permanente, o palhaço/aspirante a comediante Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é atormentado por uma condição que faz com que ele ria descontroladamente. É a primeira de muitas apropriações - ou referências - utilizadas pelo diretor Todd Phillips - mais conhecido pela trilogia de comédia “Se Beber Não Case” - para construir uma história de origem para um personagem marcado pelo mistério em torno de si.

O grande risco assumido por Coringa (2019) é o de contextualizar as motivações da vilania do personagem - algo habilmente evitado em O Cavaleiro das Trevas (2008) e ignorado em Esquadrão Suicida (2016) - , especialmente sem contar com o contraponto filosófico do seu arqui-inimigo, o Batman. O esforço em criar uma interpretação do personagem bastante distinta das que a precederam é louvável, e seus acertos derivam da magistral atuação de Joaquin Phoenix, em uma das melhores interpretações de sua versátil carreira, que conta com obras-primas como O Mestre (2012) e Ela (2013). O seu Coringa é multifacetado e dispõe de uma fisicalidade intensa, de ares kafkianos, e se desenvolve por caminhos pouco explorados pelas versões anteriores que não tinham um filme inteiro dedicado a si, criando um personagem complexo que constantemente flerta com a empatia do público enquanto sucumbe gradualmente à crueldade e a violência.

O magnetismo e a intensidade da interpretação de Phoenix e o foco no seu personagem ao longo do filme são tão grandes que podem ser capazes de distrair a atenção do público para os demais elementos da produção. O próprio diretor Todd Phillips parece ser vítima deste encanto em determinados momentos, falhando em aprofundar as reflexões que propõe dentro da trama relativamente simples que constrói, especialmente no âmbito da discussão sobre saúde mental e vulnerabilidade social. Ainda que seja reverente à elementos narrativos de histórias clássicas dos quadrinhos, como A Piada Mortal (Alan Moore, 1988), um ponto problemático do filme é a frequência e a obviedade das referências cinematográficas que utiliza, ganhando um caráter pouco original e expondo as fraquezas da visão de Phillips, bastante dependente da absorção de obras melhores. Sua Gotham, por exemplo, é reminiscente da Nova York de Martin Scorsese, do qual se apropria também de uma série de elementos narrativos presentes em filmes como Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982).

Também sinais da insegurança ou falta de tato de Phillips com o filme são a onipresença da trilha reforçando o “clima” de praticamente todas as cenas com maior carga dramática e a insistência do seu roteiro (co-escrito com Scott Silver) em determinadas situações que “explicam” demais a origem de certos elementos que compõem a vilania do seu protagonista, esvaziando uma potencial ambiguidade apresentada em diversos momentos do filme, especialmente no que tange suas relação com sua mãe, Penny Fleck (Frances Conroy) e Thomas Wayne (Brett Cullen).

Apesar de suas deficiências, Coringa é um filme que suscita emoções fortes e demonstra uma percepção certeira do porquê um personagem como este é capaz de ser tão sedutor e influente, criando uma narrativa em torno desta visão, que apesar de datada por sua ambientação oitentista, dialoga com tensões e problemáticas bastante contemporâneas. Apresentando uma interessante, mas irregular reinvenção da mitologia clássica do vilão, o filme propõe uma abordagem inegavelmente diferenciada dentro do nicho de adaptações de histórias em quadrinhos, que respeita o legado do personagem e  o direciona por caminhos surpreendentes que podem causar grande impacto nos projetos vindouros da Warner/DC nos cinemas.


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