Os Incompreendidos e o triunfo do amor pelo cinema

Um garoto que corre solitário e perdido, rumo ao mar, em um longo plano-sequência. Sua face enigmática, capturada pelas lentes de um dos maiores cineastas da história do cinema francês. É assim que François Truffaut arremata sua obra mais importante, e essa é possivelmente a imagem que surge na mente de muitos cinéfilos ao se falar em Os Incompreendidos. Mas essa obra de 1959, apontada por muitos como uma daquelas que inauguraram a Nouvelle Vague, tem muito mais a oferecer ao longo de seus 93 minutos.

O termo francês significa “nova onda” e foi usado em 1958 pela jornalista Françoise Giroud para se referir ao movimento de novos cineastas que surgiram na França dos anos 50. Os melodramas de fundo sócio-político do realismo poético francês começavam a dar lugar a temas como o amor e a vida de homens comuns, em filmes de baixo orçamento: a assepsia dos estúdios agora cedia espaço aos ambientes externos, com iluminação natural, como as ruas e as praças de Paris. E personagens considerados marginais, como criminosos, rebeldes, adúlteros e crianças abandonadas assumiam o protagonismo dos enredos.

Cena de "Jules e Jim - Uma Mulher Para Dois", de Truffaut (1962)
Outra grande marca da Nouvelle Vague é o papel preponderante da direção sobre o roteiro. Dos anos 30 aos 50, o realismo poético francês, que surgiu com o cinema falado, incorporou técnicas literárias de narrativa. Com isso, o papel do roteirista ganhou força e tornou a direção coadjuvante e convencional. Mas essa direção bem comportada, obediente aos roteiros, agora se via desafiada por nomes como Chabrol, Rivette, Resnais, Godard e o próprio Truffaut. Os diretores da Nouvelle Vague criavam uma linguagem em que as câmeras assumiam a liderança. Enquadramentos, ângulos e movimentos de câmera produziam significados ricos e próprios. O diretor tornava-se a grande figura do processo de criação.

Cena de A Regra do Jogo (1939), de Jean Renoir, com o  uso do plano americano 
Para entender melhor a Nouvelle Vague, sugiro comparar duas cenas: a primeira de A Regra do Jogo (1939), de Jean Renoir, expoente do realismo poético francês e a segunda de Acossado (1960), de Jean-Luc Godard, um dos grandes da Nouvelle Vague. Na primeira, temos o plano mais convencional do cinema – o americano, com enquadramento dos joelhos para cima, feito em estúdio. Na segunda, Godard usa o plano 1/4 (algo entre o traseiro e o perfil), com a câmera levemente tombada, em uma rua parisiense. O exemplo demonstra grande mobilidade das câmeras da Nouvelle Vague, que assumem posições variadas, filmando um espaço externo e não em um estúdio fechado.

Cena de "Acossado" (1960), de Jean-Luc Godard


Vamos então ao filme Os Incompreendidos. Sua introdução faz uma breve viagem pelas ruas de Paris, enquanto a linda trilha sonora de Jean Constantin dá charme ao momento. Conhecemos o menino Antoine Doinel, solitário e abandonado por pais ausentes. A primeira chave para entender Os Incompreendidos é ter em mente que Antoine é na verdade um alterego de Truffaut. Ambos viveram sob o peso da ausência dos pais e o personagem é um reencontro do diretor com sua própria biografia. 

A cena em que Antoine arruma cuidadosamente a mesa para o jantar denuncia um lar onde o afeto foi substituído por uma formalidade insossa. Há um automatismo melancólico no comportamento do menino dentro de casa. Em todas as cenas com os pais, Antoine (vivido por Jean-Pierre Lèaud, que recebeu uma Palma de Ouro honorária no Festival de Cannes deste ano) parece perdido, distante, quase invisível aos olhos dos adultos.



O garoto é também aviltado na escola por um professor tacanho e estúpido. As brincadeiras das crianças em meio aos gritos furibundos do homem são o modo que os meninos encontram para suportar a sala de aula. A escola em Os Incompreendidos é um ambiente de incomunicação total entre alunos e professor, tal como na peça A Lição, de Eugene Ionesco, em que a rigidez acadêmica do mestre se choca permanentemente com a criatividade espontânea da aluna. O resultado em nenhum dos dois casos é bom e Truffaut não poupa críticas à educação de sua época, facilmente atualizadas para os nossos dias.

Uma das grandes cenas de Os Incompreendidos acontece em uma aula de educação física. Os alunos correm acompanhando seu professor pelas ruas. Mas aos poucos vemos que eles vão se dispersando, um a um, até que todos desaparecem e o professor, desatento, continua correndo, sem notar a falta das crianças. O tom cômico da cena funciona muito bem graças ao plongèe (angulação da câmera de cima para baixo) que Truffaut escolhe para registrar a travessura dos alunos. O diretor na verdade abusa do plongèe e dos planos abertos nas cenas em que Antoine vaga pelas ruas de Paris, que nunca haviam sido um cenário tão constante em um filme.

Antoine parece não se comunicar com nada em seu mundo. Ele gira vertiginosamente em sua vida como o faz no brinquedo giratório do parque. Entretanto, alguns elementos de descoberta começam a se inserir na história. A literatura de Balzac e suas fugas constantes da escola para ir ao cinema começam a despertá-lo (novamente um traço autobiográfico se faz explícito). Antoine começa a mudar e sua ligação com as novas descobertas é tão forte que ele constrói um altar para Balzac.

Crianças, e não atores, assistindo a um teatro de fantoches
É neste momento que ocorre a cena mais brilhante do filme, em minha opinião. Os meninos assistem a um teatro de fantoches que lhes conta a história da Chapeuzinho Vermelho. As crianças que Truffaut filma não são atores, ou seja, são crianças comuns, que realmente assistem à peça. Os cortes ágeis e precisos do francês mostram todas as suas reações. Elas riem, gritam, levam a mão à boca apreensivas e se entreolham com absoluto fascínio. Diante dos fantoches, elas experimentam a comunicação que não encontram em nenhum outro lugar. Esse é um dos momentos mais brilhantes que já vi na arte em geral, não só no cinema.

Aqui cito o também francês Edgar Morin, em sua obra fundamental Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro: “A educação deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e resolver problemas essenciais e, de forma correlata, estimular o uso total da inteligência geral. Este uso total pede o livre exercício da curiosidade, a faculdade mais expandida e a mais viva durante a infância e a adolescência, que com frequência a instrução extingue e que, ao contrário, se trata de estimular ou, caso esteja adormecida, de despertar”. O que há nessa cena dos fantoches é essencialmente o que Morin enuncia: a curiosidade, que é despertada nas crianças a cada movimento que ocorre no palco. É incrível que Truffaut tenha intuído isso décadas antes de Morin e de forma tão bonita e afetuosa.



A história do menino Antoine Doinel vai se encaminhando para o fim. Ele acaba preso devido aos furtos que pratica junto com um amigo. Outra bela cena, se não a mais brilhante, em minha opinião a mais comovente, retrata o momento em que Antoine vai para a prisão dentro do carro de polícia. A fotografia contrasta as ruas iluminadas de Paris, palco de tantas traquinagens das crianças de Truffaut, com a escuridão profunda dentro do carro. Vemos com dificuldade o rosto de Antoine e nele escorre, silenciosa, uma lágrima. Como não se emocionar?

Antoine reencontra no reformatório a truculência da escola. Causa espanto ver crianças tão pequenas dentro de jaulas, como se fossem animais perigosos. Mas o que ele havia vivido com os romances de Balzac, as sessões de cinema, as idas ao teatro e as travessuras nas ruas provocou-lhe mudanças profundas. Ele foge do reformatório e aqui retomo a cena com que abri esta crítica. Ele corre em um dos planos-sequência mais conhecidos do cinema, sem trilha sonora, deixando ouvir somente seus passos, até chegar ao mar. A trilha ressurge com o tema principal do filme, finalizando a cena com o pizzicato delicado de um violino (ato de tocar sem o arco, "beliscando" a corda).



O mar é para Antoine um recomeço, o encontro final do menino com sua própria salvação. François Truffaut, um homem que amou profundamente o cinema e assistiu a centenas de filmes em sua juventude, encontrou uma vida nova na amizade quase paternal com André Bazin. Foi ele, um importante crítico da época, que levou Truffaut para o mundo do cinema e quando Antoine encontra o mar, podemos imaginar ali o encontro de Truffaut com Bazin. A câmera que congela no rosto de Antoine Doinel, enigmático e profundo, coloca diretor e personagem frente a frente, ambos transformados pela arte e salvos enfim por ela.
--

365 Filmes +Conteúdo +Notícias +Produtos +Cinema

A 365 Filmes é um conjunto de ferramentas que juntas formam um espaço totalmente voltado para o cinema. Seja através do conteúdo do blog, das notícias nas redes sociais ou dos produtos de nossa loja exclusivamente criados para os amantes da sétima arte, nossa motivação é divulgar, incentivar e inspirar cada vez mais cinema.