O termo francês
significa “nova onda” e foi usado em
1958 pela jornalista Françoise Giroud para se referir ao movimento de novos cineastas
que surgiram na França dos anos 50. Os melodramas de fundo sócio-político do
realismo poético francês começavam a dar lugar a temas como o amor e a vida de homens comuns, em filmes de baixo orçamento: a assepsia dos estúdios agora cedia
espaço aos ambientes externos, com iluminação natural, como as ruas e as praças
de Paris. E personagens considerados marginais, como criminosos, rebeldes,
adúlteros e crianças abandonadas assumiam o protagonismo dos enredos.
Cena de "Jules e Jim - Uma Mulher Para Dois", de Truffaut (1962) |
Cena de A Regra do Jogo (1939), de Jean Renoir, com o uso do plano americano |
Vamos então ao filme Os Incompreendidos. Sua introdução faz uma
breve viagem pelas ruas de Paris, enquanto a linda trilha sonora de Jean Constantin dá charme ao momento. Conhecemos o menino Antoine Doinel, solitário e abandonado por pais ausentes. A
primeira chave para entender Os Incompreendidos é ter em mente que Antoine é na
verdade um alterego de Truffaut. Ambos viveram sob o peso
da ausência dos pais e o personagem é um reencontro do diretor com sua própria
biografia.
A cena em que Antoine arruma cuidadosamente a mesa para o jantar
denuncia um lar onde o afeto foi substituído por uma formalidade insossa. Há um automatismo melancólico no comportamento do menino dentro de casa. Em
todas as cenas com os pais, Antoine (vivido por Jean-Pierre Lèaud, que recebeu uma Palma de Ouro honorária no
Festival de Cannes deste ano) parece perdido, distante, quase invisível aos olhos dos adultos.
O garoto é também aviltado na escola por um professor tacanho e estúpido. As brincadeiras das crianças em meio aos gritos furibundos do homem são o modo que os meninos encontram para suportar a sala de aula. A escola em Os Incompreendidos é um ambiente de incomunicação total entre alunos e professor, tal como na peça A Lição, de Eugene Ionesco, em que a rigidez acadêmica do mestre se choca permanentemente com a criatividade espontânea da aluna. O resultado em nenhum dos dois casos é bom e Truffaut não poupa críticas à educação de sua época, facilmente atualizadas para os nossos dias.
Uma das grandes cenas de Os
Incompreendidos acontece em uma aula de educação física. Os alunos correm
acompanhando seu professor pelas ruas. Mas aos poucos vemos que eles vão se
dispersando, um a um, até que todos desaparecem e o professor, desatento, continua correndo, sem notar a falta das crianças. O tom cômico da cena
funciona muito bem graças ao plongèe (angulação da câmera de cima para baixo) que Truffaut escolhe para registrar a
travessura dos alunos. O diretor na verdade abusa do plongèe e dos planos
abertos nas cenas em que Antoine vaga pelas ruas de Paris, que nunca haviam
sido um cenário tão constante em um filme.
Antoine parece não se comunicar
com nada em seu mundo. Ele gira vertiginosamente em sua vida como o faz no
brinquedo giratório do parque. Entretanto, alguns elementos de descoberta
começam a se inserir na história. A literatura de Balzac e suas fugas
constantes da escola para ir ao cinema começam a despertá-lo (novamente um
traço autobiográfico se faz explícito). Antoine começa a mudar e sua ligação
com as novas descobertas é tão forte que ele constrói um altar para Balzac.
Crianças, e não atores, assistindo a um teatro de fantoches |
Aqui cito o também
francês Edgar Morin, em sua obra
fundamental Os Sete Saberes Necessários
à Educação do Futuro: “A educação
deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e resolver problemas
essenciais e, de forma correlata, estimular o uso total da inteligência geral.
Este uso total pede o livre exercício da curiosidade,
a faculdade mais expandida e a mais viva durante a infância e a adolescência,
que com frequência a instrução extingue e que, ao contrário, se trata de
estimular ou, caso esteja adormecida, de despertar”. O que há nessa cena dos
fantoches é essencialmente o que Morin enuncia: a curiosidade, que é despertada nas crianças a cada movimento que
ocorre no palco. É incrível que Truffaut tenha intuído isso décadas antes de
Morin e de forma tão bonita e afetuosa.
A história do
menino Antoine Doinel vai se encaminhando para o fim. Ele acaba preso devido aos
furtos que pratica junto com um amigo. Outra bela cena, se não a mais
brilhante, em minha opinião a mais comovente, retrata o momento em que Antoine
vai para a prisão dentro do carro de
polícia. A fotografia contrasta as ruas iluminadas de Paris, palco de
tantas traquinagens das crianças de Truffaut, com a escuridão profunda dentro
do carro. Vemos com dificuldade o rosto de Antoine e nele escorre, silenciosa, uma lágrima. Como não se emocionar?
Antoine
reencontra no reformatório a
truculência da escola. Causa espanto ver crianças tão pequenas dentro de jaulas,
como se fossem animais perigosos. Mas o que ele havia vivido com os
romances de Balzac, as sessões de cinema, as idas ao teatro e as travessuras
nas ruas provocou-lhe mudanças profundas. Ele foge do reformatório e aqui
retomo a cena com que abri esta crítica. Ele corre em um dos planos-sequência mais conhecidos do cinema, sem trilha
sonora, deixando ouvir somente seus passos, até chegar ao mar. A trilha ressurge com o tema principal do filme, finalizando a cena com o pizzicato delicado de um violino (ato de tocar sem o arco, "beliscando" a corda).
O mar é para Antoine um recomeço, o encontro final do menino com sua própria salvação. François Truffaut, um homem que amou profundamente o cinema e assistiu a centenas de filmes em sua juventude, encontrou uma vida nova na amizade quase paternal com André Bazin. Foi ele, um importante crítico da época, que levou Truffaut para o mundo do cinema e quando Antoine encontra o mar, podemos imaginar ali o encontro de Truffaut com Bazin. A câmera que congela no rosto de Antoine Doinel, enigmático e profundo, coloca diretor e personagem frente a frente, ambos transformados pela arte e salvos enfim por ela.
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