As polêmicas envolvendo Aquarius, o filme brasileiro mais esperado de 2016, têm causado um efeito ambíguo em sua recepção pelo
público. Do diretor Kleber Mendonça
Filho e tendo vencido festivais importantes mundo afora, o longa metragem viu-se cercado de controvérsias durante o Festival de Cannes deste ano, quando diretor e atores realizaram um
protesto contra o impeachment de Dilma
Rousseff. As repercussões em torno disso acabaram tirando os holofotes do
ótimo desempenho do filme durante a mostra competitiva, em que foi apontado
como forte candidato à Palma de Ouro, prêmio mais importante do festival.
Quando digo que há um efeito
ambíguo, reconheço que, se por um lado o filme exerce um efeito magnético sobre
aqueles que são contrários ao impeachment, por outro há o enorme risco do
filme se tornar símbolo de uma posição política, ofuscando seu real conteúdo (que nada tem a ver com impeachment).
Os gritos de “Fora, Temer!” que encheram a sala de cinema ao final da sessão em
que eu estava, no Rio de Janeiro, me parecem corroborar com isso.
O regente e pianista argentino Daniel Baremboim defende que deve haver
um breve silêncio após uma obra ser executada em um concerto. O que ele pede
com isso é que haja um pequeno tempo para respirar e assimilar o que foi
apresentado, antes dos aplausos. Quando surgem gritos tão imediatos em uma sala
de cinema, suspeito que o maior interesse do público ali presente é pelo panfleto em que o filme foi
transformado e não pela obra de arte em si, rica em temas simplesmente humanos
e que não pertencem a um grupo ou um partido político.
Feita essa reflexão, vamos então
ao filme. Ele se inicia com uma sequência de fotos de época de Recife, evocando
a história da cidade e, sobretudo, das pessoas que construíram suas vidas nela.
A música que acompanha esse nostálgico momento é a belíssima "Hoje", de Taiguara. Apresentada a cidade
que servirá de cenário, conhecemos uma de suas habitantes: Clara, personagem de
Sônia Braga e a última moradora de um
antigo condomínio de Recife. Ali ela morou por toda a vida com sua família.
Alegrias, dores, encantos e segredos estão profundamente guardados em cada
cômodo do apartamento.
A personagem Clara, protagonizada por Sônia Braga, em seu apartamento. Foto: Divulgação. |
A decoração, as fotos, os livros
e principalmente o velho toca-discos em que Clara ouve sua coleção de vinis
antigos materializam a memória de uma mulher que chega agora aos 65 anos. É
interessante notar que Clara possui um hobby cada vez menos comum: o de parar tudo o que está fazendo para se concentrar em ouvir música. Seus discos são portas abertas para dentro de si
mesma. Mas uma construtora está disposta a pagar caro para que Clara deixe o
lugar, onde será construído um novo edifício – o novo Aquarius. E aí se encontra o grande tema deste filme: a modernização do ambiente urbano às custas da
desvalorização da memória, ignorando pessoas e suas histórias.
O personagem Diego (Humberto Carrão), o jovem chefe
da construtora, é um vilão tradicional. Ele é
a figura arquetípica do homem para o qual a vida é um "business". O anti-herói de
Aquarius personifica o pragmatismo de
nossos tempos, que invade todos os âmbitos da sociedade e dissolve as
tantas camadas que formam a vida humana. Diego, dissimulado e ambicioso, ignora
a subjetividade das questões em que se envolve e é capaz de atos cruéis para
convencer Clara a deixar o velho Aquarius.
Há um momento crucial na história
de Clara em que ela mesma explica porque se recusa a deixar o apartamento. Em
uma determinada cena, ela pega um disco de John
Lennon, o último lançado antes de seu assassinato, e conta como o vinil chegou até ela. Tendo sido comprado inicialmente em Los
Angeles, depois por um fã de Porto Alegre e, enfim, por ela. Aquele disco, com
todas as marcas do tempo, contém as histórias e os afetos das pessoas que o possuíram.
Como diz a metáfora da própria personagem, ele era como uma antiga mensagem guardada em uma garrafa. Assim o era também todo o seu apartamento.
As marcas do tempo e a expressividade no olhar da atriz Sônia Braga |
Na maior parte do filme, o diretor faz o uso do primeiro plano, do plano detalhe e do plano de nuca, enquadramentos muito
fechados, que mostram todas as sutilezas dos personagens. Kleber dá um tratamento muito pessoal a eles,
tentando nos tornar próximos de cada um. O trabalho de câmera é intenso, com movimentos
complexos - incluindo a câmera sobre os ombros -, que visam dar conta de todos os
detalhes do apartamento de Clara. Também há momentos em que a objetiva entra em
ação, utilizando o zoom in e o zoom out.
Uma referência interessante na
obra é o pôster de Barry Lyndon,
filme de Stanley Kubrick, na parede
do apartamento. O longa é a adaptação para o cinema de um romance que
conta a história de um homem que ascende à aristocracia, mas entra em
decadência, sendo posteriormente perseguido e abandonado. Uma narrativa semelhante à da
personagem de Sônia Braga. E as referências a Kubrick não terminam por aí. O
próprio diretor declarou que pensou na estante de discos de Clara como um monolito de “2001: Uma Odisséia No Espaço”.
Monolitos são objetos enigmáticos, e o mistério contido na estante de Aquarius
está no seu incomensurável valor memorial.
A trilha sonora do filme, já disponibilizada no Spotify, merece comentários à parte. Muitíssimo bem selecionada, ela contém músicas que dialogam constantemente com o que ocorre em cena. Taiguara, Gilberto Gil, Roberto Carlos, Heitor Villa-Lobos e até Queen fazem parte dessa elogiada seleção.
A música que Clara ouve no toca-discos com frequência é amplificada e se torna a trilha sonora da cena como um todo, mesmo quando a personagem não está mais ouvindo. Esse é um efeito bastante interessante, que dá ainda mais vida a uma trilha que já funciona tão bem. O ato final de Clara diante de seus algozes é um libelo contra homens que acreditam no futuro a qualquer custo, ou como diz a letra de Taiguara, “Homens sem medo que aportam no futuro”. Aquarius é um filme belíssimo, que merece ser visto por aquilo que realmente é: uma obra que toca acima de tudo na própria essência das pessoas, isto é, seres com suas histórias.