'Um Lugar Silencioso' e o som enquanto entidade primordial

Transformar o recurso sonoro em premissa fundamental na experiência fílmica pode significar uma sinopse dobrando para si um filme inteiro. O som enquanto senhor do arbítrio, entidade psicofísica, formal e semiótica. Esse é um risco assumido pelo longa ‘Um Lugar Silencioso’, dirigido por John Krasinski: obrigar-nos à uma etimologia visual patrocinada pela linguagem ultra-audível embora-quase-afônica. Se o som serve de dispositivo auxiliar para o funcionamento básico de um terror ‘jump scare’, nesse caso específico, ele ergue toda uma atmosfera que se vale e justifica das tragédias que se estabelecem. O som, ou quase-ausência dele, tornam-se indispensáveis no fluxo imersivo, é necessário então um pacto coletivo para que ruídos clandestinos não interrompam o grande trunfo narrativo, vira requisito fundamental a proibição do uso de celulares dentro do cinema, assim como um dado comprometimento por parte da plateia. Não à toa, durante a pré-estreia, os celulares eram colocados dentro de um saco plástico junto de uma confirmação nossa de que ele estaria desligado ou no modo avião. Não à toa, uma rede de cinemas se aproveitou disso e transformou a propaganda anti-ruído do filme em um marketing preventivo humorado. 

(Achei pertinente entrar nesse mérito para evidenciar as concorrências tecnológicas dentro de um mesmo espaço. Pense bem: se a proposta é não usar o celular e alguém burla as regras constantemente, não estamos mais lidando apenas com picaretagem individual, paira um sintoma coletivo e endêmico uma vez que a atenção plena tem se tornado cada vez mais corruptível.)

Eu, por exemplo, me comportei bem, entendi as regras, fiquei ‘vaca amarela’. 1) não faça barulho, check. 2) nunca saia do caminho, check. 3) vermelho significa corra, check. Não é difícil prever, a narrativa promove um passaralho aos desobedientes de plantão: quem burla os mandamentos vai sendo demitido da história. E entrando na história em si, não há muita margem para aprofundamentos humanos, isso exige interpretações convincentes, todos cumprem. Você entende os conflitos a partir de situações triviais ou algum clichê ingrato, como no momento (machista) em que o pai sai com o filho e não deixa a filha ir junto porque ela precisa ajudar a mãe a cuidar da casa. Todavia, há uma teia sendo montada a partir disso para que mais à frente, um evento trágico ganhe substância martirizada e desminta abruptamente a aparente distância entre pai e filha.

É lugar fácil perceber elementos estéticos emprestados ou muito próximos de outras produções: o cenário inóspito composto por milharais de Sinais (2002) ou a aparência do monstro, claramente um primo bastardo da criatura de Stranger Things. Se esses dois ‘deja-vús’ não chegam a justificar um desapontamento, a ressalva fica por conta da casa onde as internas acontecem, mais precisamente pela dicotomia organizacional contraditória. No térreo, tudo é bastante caótico e bagunçado, já no andar de cima, um mundo intacto e infanto-arranjado parece aguardar pela criança que ainda não nasceu. Não sabemos se aquilo é ou não intencional, mas me parece que o grande gap de roteiro está na forma como a estrutura dessa casa facilita de um jeito mal costurado alguns dos acontecimentos, como por exemplo a cena de alagamento. Assim como fica muito evidente o quanto a narrativa trapaceia exageradamente nas coincidências para forçar situações de emergência, algo que soa primário ao espectador vacinado ou ateu das licenças poéticas.

Grosso modo, estamos diante de um filme que vende uma originalidade que não consegue varrer para baixo do tapete a essência clichê. 

Funciona, mas apenas funciona. 
Apenas funciona mas até que diverte.
Apenas assusta mas até que diverte. 
Diverte, mas apenas acaba.

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