Gaspar Noé e o cinema do desconforto

“Eu quero fazer filmes a partir de sangue, esperma e lágrimas”, revela o personagem Murphy (interpretado por Karl Glusman) em Love, de 2015, última película dirigida pelo polêmico diretor argentino Gaspar Noé. O trecho, claramente autobiográfico, certamente não passa despercebido para qualquer espectador familiarizado com sua obra – não tanto como um guia de auxílio para a interpretação de seus filmes, mas com a simplicidade de um aviso, para tornar-nos conscientes da clareza de suas intenções.

Com uma filmografia dramática reunindo diversas – e muitas vezes longas – cenas de violência explícita (física e psicológica), relações sexuais, nudez e abuso de drogas, como na marcante cena do estupro em Irreversível (2002), a qual chega a durar longos 10 minutos, não é de se estranhar que o diretor seja considerado um dos mais “problemáticos” em atividade, dividindo a crítica e o público entre aqueles que o admiram e aqueles que o repudiam.

Gaspar Noé toma para si a difícil tarefa de mostrar, através de sua arte, exatamente aquilo que não queremos ver e há de mais perverso, egoísta e tóxico em nossa humanidade, individualidade e sociedade, colocando-se lado a lado com nomes como Lars Von Trier (Ninfomaníaca, Melancolia, Anticristo) e Thomas Vinterberg (A Caça, Festa de Família, Submarino), que seguem uma linha semelhante. Aqui não existem personagens heroicos, dotados de virtudes invejáveis, prontos para serem idolatrados e idealizados, transformados em verdadeiros exemplos da sociedade a serem postos em seus devidos lugares sobre o pedestal – ocorre justamente o contrário: com um estilo visceral, porém sutil, os personagens possuem tal complexidade que permite uma sobreposição entre a barbárie e o mundano, com os quais o espectador se identifica e simultaneamente se enoja.

Em entrevista (veja aqui), quando indagado sobre sua opinião sobre os filmes de heróis, Gaspar responde: “Eu posso gostar de filmes de ficção científica, posso gostar de filmes de terror, mas não, o gênero de super-heróis não é meu favorito”. Arrisco afirmar que a filmografia do cineasta pode ser considerada uma verdadeira antítese ao gênero, e contrasta com a produção massiva, atualmente em seu pico, de títulos como os produzidos pela Marvel e DC, que apesar de ganharem cada vez mais complexidade ainda se apoiam em roteiros dicotômicos como o já saturado bem contra o mal ou a justiça contra a injustiça.

Já em seu primeiro longa, Sozinho Contra Todos (1998), a trama é centralizada em um açougueiro que se sente oprimido pela sociedade e o mundo em geral e, como forma de revolta, permite-se aflorar seu lado mais repugnante e desprezível, representado por sua misoginia e violência constante contra as figuras femininas a sua volta. Em Irreversível, nos apresenta Marcus (Vincent Cassel), personagem infantil e impulsivo. Em Love, Murphy revela seu lado egoísta, possessivo e violento em seu relacionamento problemático com Electra (Aomi Muyock). Essas características, contudo, afloram de forma progressiva em meio a situações, pensamentos e sentimentos que são retratados com um nível de realismo talentoso, imergindo totalmente o espectador dentro da narrativa até que esse se esqueça temporariamente de se tratar apenas de um filme.

Vale ressaltar, ainda, que os personagens parecem ser assombrados por seus próprios traços negativos e quase sempre estes resultam em seu fracasso, desgraça ou angústia. Este é um elemento importante de suas narrativas pois permite um distanciamento da interpretação de que o diretor busca fazer apologia a comportamentos nocivos e agressivos, como costuma apontar o público mais sensível ou conservador, indicando, pelo contrário, que busca destacar que eles existem, estão a nossa volta e possuem consequências, tanto para quem os pratica quanto para os personagens ao entorno.

Além dos elementos característicos aos personagens, o diretor também se utiliza recorrentemente de instrumentos narrativos e visuais peculiares, que agem simultaneamente como assinaturas próprias de seu estilo e fatores que causam desconforto, como luzes vibrantes em neon piscando em uma frequência extremamente rápida, aparecendo por vezes em meio a letreiros gigantes que trazem desde mensagens ao longo da película – como ocorre uma porção de vezes em Love – até o próprio título do filme e elenco; cenários pouco iluminados ou excessivamente iluminados, ambientados com paletas de cores chamativas (como na imagem a seguir, de Viagem Alucinante (Enter The Void, 2009), que aliás, conta com uma cena de aproximadamente 5 minutos simulando as alucinações visuais causadas pelo DMT, substância psicodélica popularmente conhecida por ser o princípio ativo da ayahuasca ou santo-daime).

Em Viagem Alucinante, boa parte da película é apresentada em primeira-pessoa ou com a câmera posicionada atrás da nuca do protagonista, quando não em estilo livre, “flutuando” livremente pela cidade – embora sempre acompanhando o ponto de vista do personagem principal. Também faz uso de técnicas narrativas não cronológicas: em Irreversível, a história é contada de trás-pra-frente, enquanto em Love e Viagem Alucinante, cenas do passado se misturam com o presente de acordo com as lembranças e pensamentos do protagonista. 

Esses e outros instrumentos, que não se atêm apenas aos temas e personagens construídos, evidenciam uma direção experimental e atrevida que recheia por completo cada obra produzida. Em entrevista (disponível aqui), o diretor problematiza: "Por que no cinema americano é tão difícil achar um pênis não ereto? É porque vivemos em uma sociedade patriarcal na qual a maioria dos homens tem medo do pênis de seus vizinhos, que pode excitar suas mulheres, suas filhas ou suas mães? Eu não sei. Mas genitais são tão naturais quanto mãos, ou orelhas ou rostos. Não deveria ser um problema". Em um período onde a censura e o próprio papel da arte estão em discussão – principalmente entre aqueles que acompanham os variados debates e discussões que ocorrem nas redes sociais – artistas como Gaspar Noé tornam-se mais pertinentes que nunca, cabendo a nós a reflexão: até que ponto a arte pode ou deve limitar-se àquilo que é agradável?

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