A debilidade das relações em 'Loveless'


O cineasta Andrey Zvyagintsev aparece como um dos principais nomes do cinema russo e mundial da última década, especialmente por evidenciar em seus trabalhos forte sofisticação estilística e descontentamento com a sociedade pós-moderna russa - fazendo com que o diretor não seja muito bem quisto por determinados setores em seu país de origem. Em Leviatã (2014), vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes e do Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, Zvyagintsev incomodou diversas esferas da classe conservadora. A igreja ortodoxa russa, por exemplo, declarou que o filme não tinha o direito de existir e que o Estado teria a obrigação moral de coibi-lo. O governo também expressou sua insatisfação por meio da elaboração de um projeto de lei que proibisse filmes que “difamassem os princípios da sociedade russa.”


Nada disso interferiu no trabalho de Zvyagintsev e seu último trabalho, Loveless (2017), segue a mesma tendência em denunciar a inversão de valores que permeia o cotidiano dos habitantes de um país cujas instituições encontram-se colapsando em declínio moral. O interessante é que Zvyagintsev faz isso por meio de um enredo baseado principalmente nas eventualidades inerentes das relações humanas: um casal está em vias de divórcio e não sabe o que fazer com seu filho. Zhenya (Maryana Spivak), a esposa, deseja um recomeço para sua vida tanto quando seu marido, Boris (Aleksey Rozin), que será pai pela segunda vez com uma mulher mais jovem em breve. Alyosha (Matvey Novikov), o filho, representa um vínculo com um passado que querem deixar para trás, tendo em vista que mesmo sua concepção ocorreu de maneira menos afetuosa do que burocrática: ao perceber a gravidez, decidiram pelo casamento em vez do aborto.

É esse cenário corriqueiro que serve para destrinchar as mazelas de relações sociais que aparecem cada vez mais interiormente desertificadas e vazias de substância, ambas características associadas às tendências individualistas do mundo pós-moderno - que faz com que o compromisso social e moral seja liquidado em prol do estímulo aos prazeres imediatos, da felicidade intimista e material, do culto do eu. Isso pode ser verificado ao constatar a renúncia do casal ao filho em benefício de sua futura felicidade; da obsessão de Zhenya por redes sociais; do ambiente de trabalho extremamente rígido, conservador e ortodoxo de Boris; da fragilidade de quase todos os relacionamentos entre os personagens – que são frios assim como o inverno repleto de árvores secas retratado na fotografia crua e límpida

A despeito do desaparecimento, os protagonistas não mudam suas atitudes em relação ao outro em função do evento, mas ao contrário, as desavenças parecem intensificar-se ao ponto de serem incapazes de viajar no mesmo carro, ainda que a favor de um motivo maior. Ainda assim, tratam o sumiço de Alyosha menos com afeto pela incerteza do destino de um ente querido do que como obrigação perante a si mesmos e aos outros, afinal, constitui episódio conveniente frente às conjunturas do divórcio - nenhum dos dois se dispôs a manter a guarda do filho, de qualquer forma. 

Com título de "Sem Amor" (inicialmente Desamor) no Brasil, Loveless não trata sobre o desaparecimento de uma criança, mas tece, de forma cirúrgica, o retrato de uma sociedade hedonista cuja falta de referências e incapacidade de reflexão é sintomática.
_
Loveless conquistou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, onde também foi indicado à Palma de Ouro, e recebeu indicações ao Globo de Ouro e Oscar por Filme Estrangeiro.

365 Filmes +Conteúdo +Notícias +Produtos +Cinema

A 365 Filmes é um conjunto de ferramentas que juntas formam um espaço totalmente voltado para o cinema. Seja através do conteúdo do blog, das notícias nas redes sociais ou dos produtos de nossa loja exclusivamente criados para os amantes da sétima arte, nossa motivação é divulgar, incentivar e inspirar cada vez mais cinema.