'O Terceiro Assassinato': a ética da imagem driblando a lógica do suspense

Num ambiente carcerário, dois homens se olham através de um vidro por quase duas horas, aparentemente há uma distância moral entre os dois.

O vidro é um material ambíguo, ao mesmo tempo em que é transparente, reflete também.

Num ambiente carcerário, dois homens se olham através de um espelho por quase duas horas, aparentemente há uma aproximação moral entre os dois.

De um lado, um advogado de defesa, do outro, um suposto criminoso - ele acaba de matar o chefe que o demitiu da fábrica em que trabalhava.

A primeira pergunta que eu sempre me faço diante de algum crime aparentemente desvendado e confesso é: quais as aspirações de um advogado de defesa para aceitar uma causa ‘perdida’ ou defender um infrator hediondo da lei? Das poucas vezes em que conversei com amigos da área de direito, ouvi um tipo de resposta que vale a menção: alguns acreditam que muitos criminosos são ex-vítimas, agem dessa forma quase como uma reação espelhada a alguma dor sofrida anteriormente, não é uma crueldade relacionada a uma suposta essência, mas a uma quebra de estrutura psíquica vivenciada pelo réu em algum trajeto traumático. A figura desse tipo de advogado (do diabo) representa um polo de equivalência necessário ao equilíbrio do sistema penal, uma defesa pautada numa espécie de leilão moral, em que minimizar os danos ao acusado é um contraponto em justo alinhamento com a ideia de direitos humanos. 

Em ‘O Terceiro Assassinato’, do cineasta Hirozako Koreeda, o personagem Shigemori é o advogado de um réu-confesso, Misumi, de um assassinato com requintes cruéis e com histórico de outros homicídios no passado, mas que durante a narrativa muda a todo momento a versão do crime que inicialmente disse ter cometido. Mesmo frente aos indícios de que algo está errado, vamos notando uma certa imparcialidade em relação a mentira de seu cliente. Sua maior preocupação é pragmática: manipular a defesa de maneira convincente ao júri, revelando um estado de frieza e agonia diante da oscilação de um homem que, estranhamente, começa a confessar sua inocência, um plot incomum e muito bem explorado pelo diretor.

Neste percurso de dissolução factual, tanto a condução quanto o conteúdo narrativo parecem adotar uma estratégia interessante e quase simbiótica: a mesma margem de dúvida que vai se estabelecendo através da dialética entre os personagens, vai também tomando conta da estrutura do filme. Kore-eda bota em cheque a própria idoneidade da imagem. Quem garante que o que foi mostrado trazia uma dimensão exata e inteira do fato em si? Quem disse que um cineasta tem a obrigação de cumprir esse tipo de regra? Tal dispositivo maquiavélico parece confluir com o próprio desmonte da lógica dos acontecimentos, talvez o filme minta junto com o réu, provável, sejam cúmplices ocultos. O diretor quebra uma regra em prol da surpresa, estamos diante de um suspense em que a própria narrativa se corrompe, dando ao material uma tintura madura em sua leviandade. Inverte-se a lógica de um filme de pistas, a mentira desmascara a verdade, a resposta final é dada no início, mas vamos percebendo que a verdade nem sempre é a resposta final

Um fator que contribui bastante para que a narrativa ganhe um sedimento duvidoso, é a interpretação do ator Kôji Yakusho, que oscila entre a frieza e a emoção, despertando pena e depois revolta e depois pena. É um filme econômico em locações, discreto na fotografia, precário em suspensões imagéticas (há lindas exceções, como a cena da neve), basicamente ancorado nas interações verbais. A viabilidade parece exercer sua fundamentação no que se revela uma longa conversa recortada, que atinge suas nuances a partir de viradas e novas evidências do durante, é preciso vencer a monotonia da imagem e se concentrar na riqueza das variações retóricas, ao invés da monotonia cansativa, estamos diante de um tédio bem preenchido, em plena asseveração. 

O cinema dialógico tem um bom representante no ano, uma película cheia de culpa no cartório, que nos dobra na conversa. Enquanto a ética da imagem parece comprometida, o lucro é todo nosso.

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