O estado de inocência em A Caça (2012) e Aos Teus Olhos (2017)

É princípio fundamental do direito penal e constitucional que um indivíduo seja considerado inocente até que este seja julgado e haja total conclusão do processo legal, cabendo ao acusador prova-lo culpado e não ao réu provar-se inocente. O enredo do longa-metragem nacional Aos Teus Olhos (2017) – dirigido por Carolina Jabor (Boa Sorte) e baseado na peça de teatro catalã O Princípio de Arquimedes – e do dinamarquês A Caça (2012), dirigido por Thomas Vinterberg (Festa de Família, Submarino), dialogam justamente com esse princípio dentro da sociedade contemporânea, guiando o espectador a reflexões semelhantes através de ferramentas e elementos narrativos quase idênticos.

Em Aos Teus Olhos, a trama se desenrola em volta do protagonista Rubens (Daniel de Oliveira), um professor de natação para crianças que num dado momento é acusado pelos pais de Alex (Luiz Felipe Mello), um de seus alunos favoritos, de ter agido de “maneira inapropriada”. De modo semelhante, em A Caça temos Lucas (Mads Mikkelsen), um professor do jardim de infância que também se vê vítima de uma acusação pelo suposto abuso de Klara (Annika Wedderkopp), sua aluna e filha de seu melhor amigo Theo (Thomas Bo Larsen). Em ambos os casos, os protagonistas são retratados como personagens dóceis e que mantém relações afetivas bastante carinhosas e brincalhonas com seus alunos, o que em um primeiro momento é apresentado como uma virtude, mas que será revertida em um comportamento impróprio e condenável na visão da sociedade.


A maior diferença entre as películas talvez seja dada pelo contraste do caráter apresentado pelos protagonistas: Rubens já no início da película realiza comentários sexualizando alunas de 14 e 15 anos e chega até mesmo a recusar uma proposta para assumir uma turma com alunas adolescentes por não se sentir seguro de que controlará seus impulsos sexuais nesse caso, enquanto Lucas é apresentado como um homem solitário e tímido, porém íntegro, que luta para superar um divórcio e conseguir a guarda de seu filho Marcus (Lasse Fogelstrøm), sua principal fonte de preocupação. Outra diferença notável está na quantidade de informação que é fornecida ao espectador sobre o “abuso” em questão: em Aos Teus Olhos, tudo é relatado indiretamente no decorrer da trama, através de diálogos entre os adultos, nunca pela visão de Alex, enquanto em A Caça, Vinterberg fornece ao espectador uma cena do relato inicial exato de Klara à coordenadora da escola, embora em ambos os casos os rumores tenham início com as próprias crianças supostamente vitimadas.

A principal consequência dessas diferenças é que no caso de Aos Teus Olhos o público é manipulado a duvidar de Rubens e se sente inseguro em assumir qualquer posição sobre o caso, enquanto em A Caça a inocência do protagonista já foi garantida e confidenciada ao espectador. A partir disso, desenvolvem-se duas respostas a um desenvolvimento semelhante de enredo: enquanto os rumores (pois não há provas) se intensificam exponencialmente e as personagens são expostas a situações cada vez mais humilhantes, agressivas e cruéis, A Caça provoca empatia por Lucas e indignação frente às ações da comunidade, à medida que Aos Teus Olhos incita a dúvida e a conivência.

De toda forma, ambas películas elaboram uma narrativa que busca exemplificar a velocidade e facilidade com que a sociedade atual rompe o princípio da não culpabilidade de um indivíduo e o submete, sem provas, a níveis extremos de exílio social e punições arbitrárias que lembram a barbárie medieval – como ocorre com as diversas agressões físicas sofridas por Lucas, à sua casa e sua privação de eventos e espaços públicos, como na cena onde é expulso violentamente do mercado, ou quando o carro de Rubens é pichado com a palavra “pedófilo” – em uma verdadeira subversão de direitos onde o acusado, agora, é previamente tratado como culpado e se vê em uma luta para provar sua inocência. A fala “pura e inocente” da personagem da criança vitimada é logo recebida como verdade incontestável e desqualifica qualquer tentativa de defesa dos acusados, sendo utilizada como ferramenta para acelerar a criação e intensificar o absurdo dessa atmosfera subvertida.

Em Aos Teus Olhos, o núcleo do enredo é o personagem de Rubens em si. Os rumores se desenvolvem rapidamente através das redes sociais e ganham espaço e força através dessas ferramentas de forma virtual e simbólica, alheia a Rubens – aquele que é mais afetado – e a quem o processo de digestão da informação é lento e as consequências são concretas. A obra se conclui quando, totalmente desorientado, Rubens se vê privado de sua dignidade e seu espírito está dilacerado – seu semblante perturbado é a última imagem apresentada e nada mais precisa ser dito.

Já Virterberg faz questão de descentralizar do protagonista o absurdo da atmosfera fabricada ao longo da trama ao ir além da destruição de Lucas. Em A Caça, existe reconciliação, mas uma reconciliação aparente (tanto do personagem quanto da atmosfera): Lucas retorna ativamente à sociedade, com Marcus ao seu lado e comemorando a chegada da maturidade ao receber de seu tio uma arma de caça. Celebram caçando. Lucas está recuperado, sua imagem e status dentro da comunidade estão recuperados; até que o aspecto de reconciliação é bruscamente interrompido pelo som seco de um tiro que, ao que tudo indica, estava endereçado a Lucas. A luz do sol impossibilita a identificação do atirador (de forma simbólica, pois aqui o indivíduo personifica a sociedade) que, após algum tempo ainda com a arma apontada para o protagonista, foge correndo pela floresta. Aqui o diretor deixa sua mensagem principal, não com o falecimento de seu protagonista, mas com a morte total e brutal do estado de inocência do mesmo. Uma vez julgado culpado e repelido pela sociedade, Lucas – que sempre foi inocente – perdeu para sempre um de seus direitos primordiais.

As narrativas dialogam ao explorar o crescimento acentuado de uma postura punitiva em nossa sociedade e as consequências negativas desse fenômeno para os indivíduos que a constituem e os valores que a estruturam, utilizando a arte como instrumento para trazer à luz um comportamento que precisa ser debatido e repensado com urgência. De forma semelhante a Dom Casmurro, nunca saberemos se Rubens de fato abusou ou não de Alex, apesar das “evidências” circunstanciais habilmente inseridas no enredo (como a sunga no armário ou o fato do protagonista namorar uma ex-aluna) para embasar a postura condenatória das personagens – e do público. Não por acaso, o título em inglês dado à obra é “Liquid Truth”, que pode ser traduzido como “Verdade Líquida”, ou mesmo o título original “Aos Teus Olhos”: até que ponto as verdades e o conceito de justiça adotados pelas personagens não são fluidos e dependentes de um referencial? Para a sociedade punitiva pouco importa a verdade, basta encontrar um culpado (de preferência rápido) e que a punição seja executada, nem que seja pelas nossas próprias mãos.

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