Climax (2018) e a histeria coletiva

O diretor argentino Gaspar Noé manteve-se fiel a sua linguagem cinematográfica e temática em seu novo longa, Climax (2018), que apresenta a reunião de um grupo de dançarinos de rua em uma escola para um último ensaio coreográfico, seguido de uma festa de celebração. O ponto de virada ocorre quando as personagens começam a se sentir estranhas, e concluem que foram drogadas ao consumir uma sangria “batizada” – a única bebida disponível.

Segundo o diretor, a história foi dividida em duas partes - de maneira semelhante a “Nascido Para Matar” (1987) de Stanley Kubrick - que apesar de dialogarem entre si são claramente antagônicas. A primeira metade introduz as personagens e os relacionamentos já estabelecidos no grupo ao público, e reserva uma porção generosa para exibir a performance dos dançarinos com planos longos que são importantes para a linguagem visual do filme. A habilidade e singularidade na dança foi o principal critério de seleção do casting de atores, sendo “Climax” a primeira experiência na atuação para a maior parte do elenco. Como resultado, a coreografia é extremamente competente e provocativa, e compõe o primeiro ponto alto da película.

As escolhas de Noé e seu diretor de fotografia habitual, Benoît Debie (que também atuou em “Irreversível”, “Viagem Alucinante” e “Love”), seguem o mesmo estilo das películas anteriores, apresentando uma câmera subjetiva frenética que não parece presa a qualquer eixo e poderia muito bem ser o ponto de vista de um mosquito alcoolizado, além de planos sequência/cortes invisíveis que dialogam perfeitamente com a exibição. Outra marca registrada do diretor se mostra presente desde o início: todos os conflitos do círculo social são sexuais.

Em contrapartida, a segunda parte do longa é marcada por uma exponencial degradação psicológica das personagens até atingir um clímax (o título não é leviano) de total ruptura moral e retorno à barbárie – o que já era esperado de Noé. Uma das garotas (Selva, interpretada por Sofia Boutella) começa o boato de que a sangria está batizada, provavelmente com LSD (ácido lisérgico, um potente alucinógeno), o que leva parte do grupo a uma mudança imediata de comportamento e dá início a uma onda de violência desmedida em busca do responsável.

Noé explora absurdamente bem a relatividade/subjetividade do efeito da droga na psique humana: enquanto alguns se tornam agressivos, paranoicos e confusos, outros parecem entrar em um profundo êxtase. A câmera subjetiva torna o espectador cúmplice da experiência, mas fornece apenas as reações das personagens – deixando a imaginação se encarregar de completar as informações do delírio coletivo.


Nesse momento entra o segundo ponto alto do filme: mesclado a todos os elementos gráficos já esperados do diretor (muito sangue, violência e sexo), que vão se intensificando no decorrer da narrativa, a linguagem corporal dos dançarinos adquire um elemento medonho e diabólico. Os mesmos movimentos que encantam na coreografia da introdução agora são apresentados como uma manifestação de delírio e descontrole, banhados em uma luz que recorda “Viagem Alucinante” ou “Irreversível”, com forte uso de vermelho e azul, mas que aqui parecem evocar espíritos possuídos dançando no inferno – uma escolha estética que funciona perfeitamente.

Como já citado em um texto anterior sobre o cinema de Gaspar Noé, o diretor domina as ferramentas necessárias para causar desconforto. Se em “Sozinho Contra Todos” (1998), seu primeiro longa, extrapola seus recursos no campo moral, em “Climax” o faz no campo visual e no inconsciente da psique: a obra poderia ser considerada um terror psicológico, que força o espectador a se tornar consciente (dentro das limitações) de suas próprias paranoias e delírios em consequência de sua identificação com as personagens.

A intenção por trás de “Climax” se torna ainda mais transparente na fala do próprio Noé, que afirma categoricamente não se tratar de um filme sobre o uso indevido de drogas ou de uma “bad trip” exagerada, e sim de um processo de histeria coletiva que funciona como uma fábula: um determinado grupo está aparentemente bem, até que algo ocorre e desencadeia essa paranoia descontrolada, algo que ele compara com o que ocorre em situações de guerra ou revolução. A película termina sem confirmar ao espectador se a sangria estava ou não “batizada” – o fato em si é menos importante que seus efeitos.

Vale ressaltar que a obra traz um elenco de não-atores que, segundo o diretor, não estavam sob o efeito de qualquer substância durante as filmagens, e entregam um resultado crível e consistente, digno de reconhecimento. Uma empreitada experimental interessante e bem executada, agregando mais um título provocativo à filmografia de um dos diretores mais polêmicos em atividade. 

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