Roma – as memórias de Cuarón expõem um tecido social delicado e opressor

A arte pode servir à diversas finalidades, consideramos seu contexto para entender qual lugar de uma obra no mundo, para a arte, para a sociedade e para a história. Com a proximidade da principal premiação da temporada, a poeira da polêmica parece finalmente ter baixado sobre Roma, que (assim como Infiltrado na Klan) faz opção pelo confronto, ainda de maneira subjetiva, para desmascarar o falso moralismo que acerca nossos costumes.

O filme começa com uma câmera estática apontando para o assoalho de uma garagem enquanto é lavada. A medida que água e sabão escorrem pelo piso, são notados reflexos de aviões que voam pelo céu da Cidade do México. Lentamente, essa câmera se move para revelar Cleo, uma moça de raízes indígenas que trabalha como criada na residência de uma família classe média-alta, residindo num pequeno cômodo aos fundos da casa. A partir dali, se desenrola a sua história, que é a mesma de milhares de mulheres do terceiro mundo como numa espécie de manifesto pela igualdade, justiça e fim da exploração no trabalho.

Cleo trabalha diariamente servindo seus patrões. Acordando cedo, preparando as quatro crianças da casa para a escola e fazendo as obrigações de limpeza e cozinha da família. Todos os dias, só se retira para descansar quando as luzes da casa de seus ‘senhores’ estão apagadas. Entre sorrisos, abraços e beijos daqueles com quem ela partilha seu tempo e se dedica a cuidar, também é repreendida com exaltação e rancor por Dona Sofia, chefe da família que acabara de ser deixada pelo marido que foi viver com a amante.

Concebido à partir das memórias de Alfonso Cuarón em sua infância, o título do filme é uma referência à Colônia Roma, distrito localizado em Cuauhtémomoc (que, por sua vez, é uma das demarcações territoriais da Cidade do México). O diretor dedicou inclusive, assim como fez nos créditos, o Leão de Ouro que recebeu no Festival de Veneza à Libo (Liboria Rodriguez), a real inspiração para Cleo, que cuidou do diretor em sua infância. O filme se passa na aurora dos anos 70, entre cartazes da Copa do Mundo espalhados, há também uma tensão permanente nas ruas da cidade que culminaria no Massacre de Corpus Christi.

Há muito coração em cada tomada do filme, muito disso é transmitido em função da fotografia preto e branco que, além de ambientar a época, acentua a concretude de sua história. As escolhas estéticas do diretor forçam, primeiramente, a imersão no universo daquela família. Não demora muito até que o espectador comece a se familiarizar com todos os cômodos da casa e com cada indivíduo que vive ali. Então, o longa faz crescer o desconforto no espectador ao expor Cleo a takes longos e lentos, sempre afastada da câmera que está em constante movimento para acompanhar seu permanente serviço.

Em sua primeira hora, Roma investe em desenvolver o universo em que se passa o filme para depois descarregar uma verdadeira tormenta de angústia. A partir do momento em que Cleo é abandonada por seu namorado no cinema e recebe a confirmação de que está grávida, ela se sente cada vez mais sufocada, sem deixar a subserviência. O mundo a sua volta a acompanha, as agonias de todos correm simultaneamente. Em uma obra como Roma, não se deve reduzir o filme a continuidade linear das situações, quando cada olhar, cada ordem da casa para Cleo que o autor coloca em cena e especialmente em cada vez que Cuarón funde a inocência dela com a das crianças - Toño, Paco, Sofi e Pepe – tem muita importância para assimilar toda a vida em ocorrência. Num momento especial, a empregada canta “Eu gostaria de ter tudo para colocar aos seus pés, mas nasci pobre e você nunca vai me amar” enquanto trabalha, antes de se fingir de morta e “gostar” ao brincar com Pepe.

Mesmo que apresentado e comentado por parte da crítica como um filme mais técnico que qualquer outra coisa, Roma é um retrato da vida abaixo dos trópicos que se abre para uma discussão sempre conveniente – acerca de nosso respeito para o próximo e de como esse comportamento vulgar pode se fazer raiz de nossos principais males enquanto sociedade. Mesmo que se tratando das memórias de seu autor, a família de Roma, nos anos 70 (período marcado pela repressão em todo o continente), é um perfeito microcosmo de como a ibero-américa ainda lida com a desigualdade e as relações humanas. Ao que parece, há muito o que ser discutido, sobre Roma e sobre nossas vidas.

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