Os cinco episódios de Relatos Selvagens, de Damián Szifron


“E eu, atento a um remexer na água,
gentes lodosas vi no lameirão,
todas nuas, demonstrando irada mágoa”
Inferno, Canto VII (sobre os iracundos) - A Divina Comédia, de Dante Alighieri

O Cinema Argentino trouxe ao grande público mais uma de suas obras-primas há cerca de dois anos. Sucesso de bilheteria e de crítica e com conteúdo tão original e bem amarrado, Relatos Selvagens, do talentoso diretor Damián Szifron, é mais um grande filme que nossos irmãos sul-americanos produziram. Mais do que uma obra sobre a ira em situações extremas, o longa investiga com acidez, humor negro e grande sensibilidade a atual sociedade que construímos e alguns de seus mais profundos vícios e angústias.

O filme é composto, na verdade, de um prólogo e cinco episódios independentes no que tange ao enredo, mas que se conectam tematicamente, costurando uma série de reflexões que se somam em um brilhante resultado final. No prólogo, denominado “Parternak”, temos um avião lotado e em pleno voo, em uma viagem aparentemente comum. Descobrimos junto aos personagens que quem pilotava o veículo era um desafeto comum de todos os passageiros, disposto a uma vingança épica. A imagem de diversos animais, dentre eles grandes predadores como crocodilos e tubarões, surge após esse prólogo, trazendo a metáfora do que vimos e veremos: homens dominados pela mais poderosa fúria, bestializados por sua própria ira, prontos para atacar. Vamos a uma análise de cada episódio:

Episódio I – “Las Ratas”


O primeiro episódio – “Las Ratas” – trata de uma garçonete trabalhando, em mais uma noite chuvosa em um modesto restaurante. O equilíbrio dado pela rotina logo termina na chegada do homem que provocou o suicídio de seu pai e assediou sua mãe, destruindo sua família quando ainda era criança. Imediatamente reconhecendo o homem, ela vive o conflito entre a ética e a vingança. A dona do restaurante, personificando os instintos mais primitivos, sugere dar a ele veneno de rato. 

Um elemento de humor negro é então introduzido: o veneno estava vencido. As duas se questionam se a substância vencida faria mais ou menos mal a quem a ingerisse e a dúvida arranca risos do público. Através desse momento de humor, Szifron torna o veneno a alegoria exata do episódio: o veneno velho, que aguarda lenta e pacientemente seu momento de matar, é como a própria garçonete, que havia aguardado por toda a vida o momento de vingar a ruína de sua família. Todo esse tempo de espera converteria a jovem em assassina (o veneno que ainda mata) ou ela se manteria ética (o veneno já inócuo)? Afinal, até onde se é capaz de ir para devolver uma agressão?

Episódio II – “El más fuerte”


Exemplo de contra-plongée: o personagem filmado de baixo para cima, dando a sensação de ser maior do que é, ou seja, o mais forte na disputa de trânsito  
O segundo episódio da obra de Damián Szifron é, em minha opinião, um dos melhores. O que acontece quando dois homens, um viajando em um carro luxuoso e outro em um carro velho e modesto, se encontram em uma estrada afastada? Uma batalha até as últimas consequências (muito bem realizada tecnicamente, com ótimos plongée e contra-plongée) para provar a força que cada um imagina ter e não permitir ao outro sua negação.

O homem do Audi luxuoso não admite levar uma “fechada” de trânsito de um carro velho, dirigido por um homem de classe social inferior. Da mesma maneira, o homem do carro velho não admite sentir-se inferior pela classe social a que pertence e pelo carro possui. A virtude de ambos passa a residir exclusivamente em seu poder de compra. Consumidor torna-se também mercadoria, como lembraria Zygmunt Bauman, e os dois homens, rancorosos e violentos, terão na eliminação do outro o meio de se afirmarem como bens de consumo e não mais como seres humanos. 

O humor novamente se faz presente quando um policial, diante dos corpos carbonizados dos homens, pergunta se foi um crime passional. A posição em que os corpos aparecem mistura a luta animal com o abraço fraterno, mostrando que aqueles homens só se reconheceram como iguais na morte e reduzidos igualmente a cinzas.

Episódio III – “Bombita”



"As cadeias da humanidade torturada são feitas de papel de escritório"
(O Processo, Franz Kafka)

Um homem que estaciona seu carro em um local proibido, mas cuja proibição não estava sinalizada. Uma multa injusta e um longo e doloroso processo burocrático para tentar desfazer a injustiça sofrida. Esse é o enredo do terceiro episódio de Relatos Selvagens. A ética é novamente o centro desse episódio e é interessante notar que, logo no começo dessa terceira história, o injustiçado Sr. Bombita (interpretado pelo sempre excelente Ricardo Darín) entra em um loja de doces e, realizada a compra, demonstra desaprovação com a atendente que ia esquecendo de lhe dar a nota fiscal. Sem dúvidas, um homem ético, mas que vive grandes conflitos familiares. 

Decepcionado com a ineficácia de um sistema desonesto que resiste em lhe fazer justiça, o Sr. Bombita decide-se então por um solução dramática. Uma doce e calma canção é executada, enquanto ele põe em prática seu plano explosivo (aqui em uso literal e metafórico), tomando café com puro cinismo do outro lado da rua. Um momento imperdível de Relatos Selvagens. Ao contrário do personagem de Franz Kafka – o enigmático Josef K -, o Sr. Bombita evita o fim trágico, e como criminoso, começa a ser respeitado por todos. Nesse momento, resta fazer uma pergunta retórica: não há algo errado com uma sociedade em que alguém recorra à barbárie para reaver seu lugar de sujeito?

Episódio IV – “La Propuesta”


O quarto episódio de Relatos Selvagens traz como tema o poder e o dinheiro. O filho de um milionário atropela e mata uma pessoa. Começa então um jogo de chantagens e extorsões de toda sorte, em que o pai tenta livrar o filho de uma justa pena pagando. Ou melhor, comprando a todos, inclusive o empregado da casa, que mediante uma bela quantia, decide assumir o crime no lugar do jovem irresponsável. Tendo vivido tantos anos no alto do império que seu dinheiro pode comprar, o pai parece confrontar-se pela primeira vez consigo mesmo, como alguém que se olha e enfim se reconhece no espelho. Após chantagens sem fim, decide desistir do plano. 

Numa bela e segura interpretação, o ator Oscar Martinez dá vida a um homem capaz de um ato de rebeldia há muito tempo adormecido. Quando a cumplicidade dos criminosos - de colarinho branco - invadiu os limites de sua própria casa, envolveu seu próprio filho e ameaçou arruinar o último recôndito sadio da sua existência, isto é, sua própria família, esse poderoso mas frágil homem ousou enfim a ruptura. O episódio, contudo, reserva um desfecho trágico a todo o problema.

Episódio V – “Hasta que la muerte nos separe”


Se você ficou até aqui nesta crítica, saiba que Szifron preparou o melhor de seu longa para o final, em minha opinião. Em uma festa de casamento, a noiva descobre que seu noivo a traiu e convidou a amante para a cerimônia. Em desespero, ela foge da festa, enquanto o noivo tenta alcançá-la. Aqui, o diretor opta pelo movimento dentro do quadro, em que ambos correm aproximando-se da câmera - “head-on” - , em mais um bom momento técnico da obra. Após trair o noivo com um cozinheiro no terraço do prédio, a mulher, agora adúltera, conduz toda a festa a uma verdadeira hecatombe, levando o noivo ao desespero e lançando a amante sobre um espelho (provocando-lhe cortes terríveis da cabeça aos pés). O pavor se apodera de todos os convidados.

Por que considero esse o melhor episódio do filme? Pois nele se encontra uma das mais duras reflexões sobre o mundo atual. O casal recém-casado descobre na traição de um e na fúria destruidora do outro o completo fracasso de sua relação. Voltando a Bauman, no mundo liquefeito da "compromissofobia", conhecer um ao outro é uma tarefa arriscada, cujo preço se evita pagar. Os vínculos tornam-se assim um mero protocolo social. Para Ariel (Diego Gentile) e Romina (Érica Rivas), a infidelidade de ambos é a única forma de exporem a si mesmos a frouxidão do laço que os une. Quando agridem um ao outro, agridem na realidade a relação frágil e protocolar que estabeleceram até então. E ao final, quando Ariel estende a mão para Romina, eles entendem que ali, na destruição de tudo, estão descobrindo o amor que haviam evitado. 

Essa ideia lembra a cena final de "Beleza Americana", de Sam Mendes, na qual a esposa só descobre que ama o marido quando o vê morto, com um tiro na cabeça, tendo ela mesma chegado até ali empunhando uma arma para matá-lo. Ela abraça então as roupas do marido dentro armário, em um choro comovente. Damián Szifron e Sam Mendes demonstram que às vezes o amor só consegue nascer em terra arrasada. Uma reflexão que ecoa dias após assistir ao filme.

Relatos Selvagens é um filme inteligente, auspicioso e que entrega com brilhantismo aquilo que promete. Através de seis situações dramáticas, com personagens chegando ao limite de seus atos, o longa nos obriga à reflexão: por que é necessário que tenhamos diante de nós personagens em situações tão extremas? Talvez porque só assim, sob uma lente de aumento que revela nossas feras ocultas, é que consigamos nos enxergar como realmente somos.

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