O Discreto Charme da Burguesia, de Luis Buñuel


No ano de 1972, o espanhol Luis Buñuel já possuía uma filmografia extensa e bastante sólida, tendo
se tornado o grande cineasta de seu país e um dos maiores na história do cinema. Lembrado por sua grande aproximação artística com o surrealismo de Salvador Dalí, com quem colaborou em seus primeiros filmes, o diretor de "Os Esquecidos", "Ensaio de Um Crime" e "O Anjo Exterminador", continua mantendo incrível atualidade em pleno século XXI. Escolhi, portanto, uma de suas principais obras para iniciar minhas atividades nesse blog – "O Discreto Charme da Burguesia", sua interessante comédia satírica de 1972.

A trama descreve os desencontros cheios de nonsense entre seis amigos durante uma noite de jantar, a qual nunca chega a acontecer devido aos mais variados, absurdos e cômicos acontecimentos. Buñuel acerta plenamente ao utilizar como mote o principal ritual em que a burguesia se reúne para discutir amenidades, exercitar seu egoísmo e preconceito e debater a forma mais adequada de tomar elegantemente seus Dry Martinis.

A primeira tentativa de reunião fracassa na chegada dos convidados à casa dos anfitriões, pois descobrem que por algum motivo chegaram no dia anterior ao jantar. À isso, se segue a ida a um hotel, no qual encontram o dono morto, a ser velado no próprio ambiente. Uma série de acontecimentos pouco reais, mas com os quais todos os personagens lidam com absoluta naturalidade. Buñuel já demonstra nesses primeiros minutos do longa qual será o tom de sua comédia: dissolvendo as fronteiras entre o real e o fantástico, o palpável e o onírico, ele tecerá uma teia de acontecimentos em que os seis amigos burgueses jamais obterão êxito em demonstrar seu "charme". As tentativas posteriores também terminam de forma inusitada, seja pela fuga dos anfitriões para fazer sexo nos jardins da casa, pela chegada de um grupamento militar para realizar exercícios na propriedade, ou pela inesperada prisão de todos por um policial que interrompe o momento blasé, cheio de esnobismo, dos amigos.

O ator Fernado Rey no filme do diretor surrealista
Destaco em meio a todas essas reviravoltas, a excelente interpretação dos atores que formam o grupo de protagonistas, especialmente a atuação de Fernando Rey, vivendo o embaixador da República de Miranda (Don Fernando Acosta), muito preciso ao demonstrar toda a hipocrisia de seu personagem. Algumas de suas falas são de absoluta atualidade. São notáveis suas afirmações: “Nunca haverá um sistema que dará algum refinamento social às classes mais pobres. Mas não sou um reacionário, vocês me conhecem”, ou ainda: “Não tenho nada contra os estudantes, mas o que se pode fazer quando uma mosca entra em seu quarto, a não ser usar um mata-moscas para livrar-se dela?”. O filme é recheado de falas desse tipo, todas proferidas sem qualquer constrangimento. 

A figura de um padre, que se apresenta a dois dos amigos (o casal Sénéchal) para trabalhar como jardineiro da casa, é o contraponto ao sexteto que protagoniza o longa. Dedicado a uma vida humilde e sincera, Buñuel cria expectativas ao mantê-lo como antítese do que se vê no restante do filme. Mas o diretor não poupa seu público de uma vigorosa surpresa, ao destituir o pároco de qualquer postura caridosa em uma cena em que o personagem toma uma decisão nada usual para um homem religioso. Aliás, está aqui mais um exemplo de uma característica marcante do filme, que se desenvolve sempre com quebras de expectativa e sobressaltos, que encerram cada uma das tentativas de jantar e também o destino do padre, agora ressentido e violento.

Cena de "O Discreto Charme da Burguesia", de Buñuel
Não se pode deixar de comentar, ao analisar O Discreto Charme da Burguesia, a interferência constante dos sonhos dos personagens em meio aos acontecimentos reais. É em um desses sonhos que se encontra a melhor cena do filme. Quando um dos personagens adormece, seu sonho coloca os seis amigos em uma mesa para o famigerado jantar. Eis que se abre uma cortina e percebemos que eles estão em um palco, sendo observados por uma plateia que inicialmente os aplaude, mas que, diante de sua saída confusa e atrapalhada, passa a vaiá-los com força máxima. Notável é a presença de um homem à beira do palco soprando as falas para cada um dos amigos burgueses, como em uma peça de teatro. Um deles declara, completamente embaraçado: “eu não decorei as falas”. O simbolismo é claro. Luis Buñuel transforma em arte algo que pode ser lido em Sartre, por exemplo, quando ele introduz o conceito de “má-fé”. A má-fé sartriana é explicitada nessa cena do teatro, em que cada um dos homens e mulheres sentados à mesa apenas representa o roteiro escrito por terceiros, sob risco de vaia geral, se não tiverem a atuação impecável que o mise-en-scéne exige.

Penso que é disso que trata o filme do grande diretor espanhol, que inspira o hoje também aclamado Pedro Almodóvar – a representação em uma vida inútil, ensimesmada e que torna os seis personagens insensíveis aos seus próprios anseios e também às dores do mundo. É nessa perspectiva que destaco, por fim, outro momento onírico do filme, no qual um jovem soldado sonha estar em uma rua deserta e nela encontra um amigo e um grande amor perdidos. Os sonhos, tão livres em Buñuel, trazem luz à grande questão em O Discreto Charme da Burguesia: o nosso maior anseio não é a imagem que construímos para a cena social, mas o que nos move para fazer com que a vida tenha valor e não seja uma mera sucessão de banalidades em busca de um jantar perfeito. O plano aberto do final mostra homens e mulheres já sem qualquer charme, andando a esmo à procura de si mesmos.

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